sábado, 8 de fevereiro de 2014

O planeta precário


a noite cerrou todas as janelas
alastrou um império de improviso para os
cães sem nome sem dono e atirou
longamente o seu queixo de toneladas até
à mancha
espalmada do rio

e à sua maneira de nos insultar
a tristonha envergadura da sua queixa

as palavras
que usamos
têm  a idade que aparentam

atingidas pela velhice ou pelo descrédito
num alvoroço se oferecem ao abismo

despenhadas rolam
e se confundem com a lava
com a espuma tensa do tempo ainda intacto

para de novo nascerem noutra pátria
mais respirável
ternamente povoar o indómito e triste
hálito
do mais apavorado e generosos bicho

À hora de morrer vai ser necessário
imitar a navegação tumultuosa e resignada
das palavras.

Entre elas e o poeta
um segredo brinca
religioso
trémulo
e imprudente

um segredo amoroso e repugnante

Tu, que de há tanto e tão bem o conheces
melhor te será conservá-lo escondido
até ao momento da surpresa
que a morte branca do medo exige

Cada um de nós, deve ser, não a lei, mas
o galho inopinado e ímpar
o plano imediato da evasão
alucinado e lúcido

Cada um de nós deve ser o momento
de recusar férias à ferida
e de mandar matar todos os parafusos
destronar todas as molas reais
ou irreais
da

respiração artificial

pendurada do tecto
a tua ausência informa: é madrugada
bela notícia confirmada
o céu está menos preto

busto ou explanada
mas só de sombra
a solidão redonda
desta vida parada

não é flor nem bomba
nem página virada
nem a hecatombe
fria e ferial

da charada final
e indesejada !

Falta o indulto especial da tua mão
e tu a dizeres-me, aguda e de assalto:

 "A solidão
é nada."

a cabeça começa por fazer dueto com o teu relógio
crepita sobre a almofada
parece mesmo um gatilho em desuso
uma flecha detida por um hábito lívido

são já os primeiros rumores estremunhados
no tablado das coisas
para onde a luz, como tu, atira os braços
como tu um beijo

enorme e distraída oficina conjugal

é agora a infalível
serpente inofensiva e doméstica do sol
monstro diluviano de capoeira
a farejar
com um aspecto acabrunhado de enfermeiro despedido
a fresta que permita o carnaval

está então na hora?

a cabotagem entre portos diminuídos
tenazmente em circuito cinzento
o tráfego livre dos gestos, enrugado apenas
pelo milagre de um ou outro vizinho mais mumificado
se levar pela mão a cara de brinquedo do filho

a quem acabam por perdoar por não ter ainda convite
e é só entrar

no solfejo nauseante
no cerimonial mercantilista do braço ao peito





josé sebag
surrealismo abjeccionismo
antologia organizada por mário cesariny
edições salamandra
1992




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