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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

História de um homem lúcido apesar de tudo



A insónia ou o excesso de luz leva-me muito cedo de volta ao mesmo jardim, o que é certo, é que a minha morte nem me deixa descansar, nem dormir, não me deixa em paz.

Ali encontro o mesmo gato, e o mesmo cão vadio, perigosamente vivos e reconheço-me neles, o mesmo movimento muito próximo de mim, como se fossem parentes chegados ou velhos conhecidos de outra vida ou de outra morte.

As aves estão hoje muito mais solícitas, quase pousavam nos meus ombros de sonâmbulo, numa familiaridade de irmãs, de gente afável, convenientemente esquecidas, se eram pombas ou se eram falcões, nem sequer me passou pela cabeça que pudessem ser abutres que os há, onde menos os esperamos.

As árvores olhavam-me de soslaio, em contraposição ao despudor que existia na incompreensível solicitude das flores, numa diplomacia de florista sem estabelecimento,
o seu perfume adormecia a minha alma, tudo com o mínimo de dor e de burocracia.

Os peixes do lago olhavam-me fixamente e nadavam em círculo nos sonhos que por sua vez estavam nitidamente com falta de ar, depois desapareciam na noite dos pulmões, rumo às águas profundas com a desculpa de que tinham relatórios para fazer.

Tudo isto pode ser uma ilusão ou erro de paralaxe, eu serei tão-somente um espectro invisível ou uma sombra no olhar cego, de mármore, de uma estátua grega, adereço que faz parte de uma estratégia de branqueamento, daquilo que era a minha vida, sem história.

Este pode ter sido o último catre de uma solidão maior, por ventura, passarei por ser uma espécie de alma penada que morreu sem dar por ela, numa morte assistida.

E assim, aqui estávamos todos a morrer como iguais e em igualdade de condições que não é a mesma coisa, nesta convergência de infelizes animais que prolongamos na morte, o simulacro de vida que tivemos, neste jardim ao abandono.

Nesta retrospectiva dos momentos que antecederam a minha morte, por um inexplicável erro de processamento não me lembrei de momentos felizes, por uma infeliz coincidência da inexperiência de quem operava o desfibrilhador não sobrevivi, eu que tinha sido por um lamentável lapso apagado dos registos dos sem-abrigo, embora tal, para o efeito, fosse mais uma coisa irrelevante.

O que fica para história é que morri entre as 05.30 e as 07h30 p.m. de hipotermia, já não fazendo falta nenhuma e sem família conhecida para notificar.

Nunca gostei de incomodar!

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2012

Carlos Vieira