Dizia,
a minha obra nasce nas minhas mãos, estou em relação constante com ela. Esvaído o adjectivo possessivo, encontro a simultaneidade; Tejo-rio é simultâneo com os outros rios, delta ou estuário, ou outra forma de boca. Escoar é escrever e ______________
tornou-se pacífico o pomo da discórdia.
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Penso num motim de palavras; no dia em que eu direi: as palavras amotinaram-se, reivindicam a revolta que a língua sujeita ainda não lhes tinha oferecido.
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Quando estou assim deprimida como hoje, escrever, preparar a comida, ir aqui ou além, faz-me medo; é o movimento que me incomoda, o desfazer o casulo quando eu própria ainda não decidi nascer. Nestes dias devo nascer conscientemente num mundo desconhecido, e não creio sequer que esse mundo já exista para me receber.
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O preço da Liberdade é uma certa solidão.
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Por que escrevo nesta língua que Portugal atrasou como um relógio?
Atrasar uma língua é torná-la inexpressiva.
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Por que é que não sinto mais amor por quase nenhum dos seres humanos que me rodeiam? Amaria, talvez, um segundo ser que se veria, em filigrana, por detrás. O remorso deste sentimento me faz retomar a palavra remorso que, finalmente, acho bela. Terá ela uma relação subtil com o segundo? Devo reflectir com o Augusto sobre isto, tão complicado para mim. Há, no entanto, indícios que me comovem, espalhados por toda a parte. Pouco a pouco, as minhas casas, jardins, tornam-se feixes de indícios espalhados. Por mim reunidos. Sinto-me, há uns tempos, uma verdadeira mulher de areia. A sede, a extensão desértica, o amor pela noite refrescante, os pensamentos desligados uns dos outros, mas livres como grãos de areia. Num oásis do deserto há o sofrimento angustiante que me espera, a face com máscara.
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Procuro não perder o som das vozes que me ocorrem porque nada é mais triste do que o lugar vazio deixado por um texto perdido.
Maria Gabriela Llansol
in, NUMEROSAS LINHAS
Livro de Horas III
Assírio & Alvim