Mãe, de pressentir-te o voo no olhar atento
eterno
dos dedos que te beliscam o pescoço
que te “orelham”
a desenharam a elipse oval da ternura
oiço-te em oração
ou será numa canção de embalar
sei que em tudo foste o barco
que partiu ao nosso encontro
não esqueço o teu rosto a pairar na areia
enquanto ancorado no peito o grito
do testemunho lento e aflito
medes de novo a temperatura
que te não dá descanso
no teu gesto manso
sem sintomas
sem queixas
de temperar a pressa e a raiva e a angústia
do momento
de um qualquer banco de hospital
a tua mão que compõe as últimas madeixas
que vira a página da história
e faz de pássaro
na luz de candeeiro
a esvoaçar em todas as sombras
a exorcizar todos os medos
pões água na fervura do tempo
na torneira do banho
aqui estás e ali ficaste
aquém do silêncio do esquecimento
de regresso à gramática doce
à alegria das primeiras palavras
acompanhas as filhas rasa de lágrimas
por dentro
ou de sorrisos por fora
sentada no rectângulo da cama
acolhes a todos
curvada sobre o ângulo recto da justiça
enquanto a borbulha feia cresce
e a ferida infecta
esperas-nos no infinito limite da tua paciência
fazes cinquenta esperas e consultas por ano
e milhares de análises de resultado imprevisível
aqueces mais uma vez a sopa
o leite meio gordo
e tratas o caos que te perturba
por todos os cantos da casa
e da tua fragilidade
compreendes a falta de atenção
de nos ausentarmos quando tanto precisavas
arranjas um último beijo
no fim do dia
do carinho, da compaixão e de coragem
de uma vida
ainda vamos passear pela tua mão
conhecer o mundo
enquanto aconchegas o cobertor.
Lisboa, 6 de Maio de 2012
Carlos Vieira
“Mãe e Filho” de Gustave Klimt