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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Histórias de tempo de amor e morte


I
ela era pedra quente e relógio de sol
ele apenas a sombra esguia do ponteiro
a refrescar o silencioso mármore da sua pele
II
ela era silício de flores e o relógio de água
ele uma fonte inesgotável
a suplicar trégua ao tempo de traidores
III
aquela serenidade é quase eterna
não fosse a impunidade que suporta
e a noite que os liberta
IV
o corte da carótida pelo punhal
que he ceifou a vida definiu o labor do cinzel
e lhe esculpiu o amor na morte
V
quantas vezes sinto que morri em ti
o eco na memória da tua mão e coração de pedra
medra ao roçar a tua combinação de seda
VI
por quanto tempo seremos o desencontro de dois rios loucos
que sorrimos sem graça e que morremos aos poucos
para quando outra vez tréguas de água viva
numa qualquer alcobaça
Lisboa, 30 de Julho de 2016
Carlos Vieira


sábado, 11 de janeiro de 2014

O teu riso



Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda
 

sábado, 28 de dezembro de 2013

blues da morte de amor


já ninguém morre de amor, eu uma vez 
andei lá perto, estive mesmo quase, 
era um tempo de humores bem sacudidos, 
depressões sincopadas, bem graves, minha querida, 
mas afinal não morri, como se vê, ah, não, 
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz, 
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes, 
ah, sim, pela noite dentro, minha querida. 

a gente sopra e não atina, há um aperto 
no coração, uma tensão no clarinete e 
tão desgraçado o que senti, mas realmente, 
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não, 
eu nunca tive queda para kamikaze, 
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida, 
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber, 
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim. 

há ritmos na rua que vêm de casa em casa, 
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali. 
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha 
no lusco-fusco da canção parar à minha casa, 
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente, 
minha querida, toda a gente do bairro, 
e então murmurarei, a ver fugir a escala 
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim. 

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

domingo, 8 de julho de 2012

Viagem de circum navegação



Eis-me aqui ao leme no meio do turbilhão do nosso desejo

Sulcando teu corpo sendo toda a Terra és tudo o que vejo

Teus dentes brancos na crista da onda no peito me devoram

Enquanto lentamente te atravesso tuas profundas entranhas

As unhas cravadas nos meus ombros toda a razão dilaceram

Tendo-te à mercê sem nunca te entregares me acompanhas

Mesmo quando a tua agitada tempestade mais me atormenta

Sigo no teu rumo e querendo-me salvar em ti fico perdido

Minha alma em chamas a tua carne doce de coral sustenta

Fujo do olho do furacão e se mais longe de ti mais desmedido

Mais cego do amor que desce na vaga e se torna mais fecundo

Nesta expedição em que para fugir de ti fui ao encontro da dor

Erro no labirinto cósmico do teu corpo pois não há mistério maior

Que o de olhar-te nos teus olhos e entrando em ti escutar o mundo



Lisboa, 8 de Julho de 2012

Carlos Vieira



quarta-feira, 13 de junho de 2012

O Amor

Aragon:

" O amor é a única perda da liberdade que nos dá força": esta frase que ouvi à pessoa a quem mais quero neste mundo resume tudo quanto eu sei sobre o amor.
Quando o amor exige o sacrifício de tudo quanto faz a dignidade da vIda, nego que isso seja o amor.
Não posso passar sem a presença da pessoa amada. É possível que isso seja uma enfermidade."

DO AMOR ADMIRÁVEL E DA VIDA SÓRDIDA

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A mão escorrega na fímbria do teu vestido

A mão escorrega na fímbria do teu vestido
 o sol pousado nos cornos de um touro
foste água fresca na ânfora
eu fui o vento que te despe na tarde   
escondes-te num puro lençol
subterrâneo
aí ao fundo do túnel
há um caminho de tâmaras
e de Mediterrâneo
ouve-se uma canção
de porcelana
onde podes voar o frágil silêncio
trazes a máscara da idade do bronze e do sal
correm ali as desvairadas lágrimas
lâminas espetadas
no avesso trágico das memórias
pelos teus olhos perpassa o gume das sombras
de leopardo
e nos desgrenhados momentos de luz
dos suspiros
nos teus lábios pressinto
despertar uma sede de papiros
nas entranhas o apelo do caos
neste início da fome
e das trevas
da época moderna
arde olímpico
o  desafio do teu rosto
que consome
meu único vestígio de chama eterna

Lisboa, 12 de Outubro de 2011

Carlos Vieira

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Recolha de vestígios

Leio nos teus lábios
a senha
adivinho no perfume
o perigo
que se desenha
na curva do teu ombro suave.
A tua voz acalma
o que não prenuncia
mas se insinua
na chuva desgrenhada
dos teus cabelos.
No percurso dos meus dedos
decifro o sal
das lágrimas
e o suor
dos medos
no caminho álacre
do amor.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2010
Carlos Vieira

Valdi Sabev - In This World

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Outra vez cantos de sereia

De ti
são inúmeros os sinais que vislumbro
por detrás
da efémera cortina do momento
em que espreitas
por uma janela de tempo
de tanto mar
e de tanto desassossego
contudo não encontro
a nua latitude do teu torso
e navego na esteira
do que nos guia e nos ilude
por vezes aquela luz lá longe
podem ser as labaredas do teu seio firme
ou o intrépido rasgar da tua carne
enunciando o fulgor dos pássaros
cúmplices
solto as amarras
e sigo-te por aquela rota
pois podes ser o silêncio aceso nas falésias
e ouvir a tua voz
é como exibires uma coroa de prata
e se despires a filigrana da espuma dos dias
vais devastar a mentira etérea
e o verdete da malícia
que nos cerca
e nos separa
se pudesse
apenas saborear de novo o calor e o sal
que libertas do teu corpo
só isso me iria permitir
fundear noutros horizontes
à sombra dos teus pensamentos
se pudesse usufruir dos aromas
que descem felinos
pela noite das árvores dos bosques
no teu território
se pudesse desfrutar
no jardim luxuriante um simulacro
dos teus inesperados abraços
e ir à flor da pele
sorver o elixir e o antídoto
dos frutos proibidos
se pudesse descobrir o meu rumo
se ele fosse necessário às tuas tréguas
nunca estaria perdido
nestes desencontrados sinais
de ti

Lisboa, 17 de Janeiro de 2012

Carlos Vieira







                          “Pequena sereia” em Copenhaga

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Logaritmos


Sempre este secreto desejo do reencontro
na esquina um lugar
onde te reconheço

Esta insatisfação na altitude de um beijo
aritmética invulgar
quando amanheces

Inventas o caminho íngreme que me contas
vences um socalco
e esconde-se a raposa

Depois a luz que o ângulo do teu rosto revela
é só o fragmento do olhar
na clausura da tela

Por entre as copas das árvores espreita-me
o céu ou espreito-te eu
a ave que voa nada teme

O gesto parte contorna-te os lábios
fala por si  
e tanto havia para te dizer


Não sei se é teu o vulto que avisto
fraca é a vista
só de tocar-te fico cego

O belo alabastro dos teus ombros tão exacto
do perfume que inebria
e da confluência de afagos

Banhado pela fome ou luz triste que o despe
resiste o mistério do teu corpo
fogo eterno que me consome

Lisboa 15 de Janeiro de 2012

Carlos Vieira

“Naked Woman before Stove” por Felix Vallotton



domingo, 15 de janeiro de 2012

A distância do teu olhar

Olho para ti
Na penumbra
do teu olhar sereno
não sei que vislumbra.
Sei que dentro de mim,
arde de novo
o que não tem razão,
a carne viva das ideias,
num fogo brando
de palavras e gestos
contra toda a Inquisição.
Breve momento
em que invento
a voz e a coragem
à sombra sem fim
da tua imagem,
meu abrigo manso
de olhar o mundo.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2010

Carlos Vieira