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terça-feira, 13 de junho de 2017

história quase surreal dos meus avós paternos



na ressaca de dois filmes franceses não acabados de ver, desembocaram no delta desta minha primeira noite de verão, o meu avô José e a minha avó Maria Rosa, como dois náufragos que realmente foram, embora quase podia jurar que nunca viram o mar
a casa dos meus avós era num lugar no fim da aldeia, junto à Fonte das Lágrimas, todos os meus familiares viviam na penumbra e movimentavam-se em câmara lenta, havia um pátio habitado por um cão que não parava de ladrar e dois perus que peroravam ao desafio
o meu avô filho de mestre escola, padecia de um alcoolismo patológico, o que o levava a frequentar tabernas esconsas e adegas para o qual não era convidado, atendendo à sua sofreguidão e destempero. foi no entanto boa gente e lia jornais furiosamente toda a tarde, debaixo de um alpendre, notícias requentadas quase sempre de meses, era a única ligação sóbria ao mundo
a minha avó Maria Rosa era muito pequena sem ser anã, sofria de bicos de papagaio e não se dava por ela, debitava uma ternura silenciosa, perfumes de frutas, geleias e alfazema, tinha uns olhinhos pequeninos e poucas palavras, lembro-me que aquilo que havia de mais colorido naquela casa era uns comprimidos que experimentei, felizmente sem consequências de maior, depois levava-me pela mão para o seu quintal, que no meu entendimento de criança era aquilo que era mais parecido com o paraíso
ali deleitava-me na luxúria das cerejas, das nozes, das nêsperas e outras frutas, texturas ou árvores que me esquecia, exigiram de mim a ousadia e a ginástica e os argumentos que mais nenhum outro local da Terra, tão eloquentemente me pôde confrontar, depois chegou a história da serpente, ainda em que momento oportuno e quebrou-se o encantamento

Lisboa, 13 de Junho de 2017


Carlos Vieira

O drama do árbitro depois do penalti


O árbitro assinalou perentório o castigo máximo.
O guarda-redes está com os nervos à flor da pele, naquela pose de felino ou ave de rapina, no momento imediatamente antes, do ataque ou de precipitar o golpe de asa.
Entre os postes, em cima da linha de baliza, baila no convencimento que desse encanto ou desse equilíbrio instável, se encandeie o marcador do castigo máximo.
Naqueles momentos que antecedem a marcação do castigo máximo, é recorrente o filme da sua vida, que se projeta na sua mente, quanto de ilusões perdidas e alegrias breves, tenta adivinhar o lado por onde vai a bola, da mesma forma que se enganou nas encruzilhadas da sua história irrelevante, mas aquele é o momento, o último reduto da esperança, daqueles que nas bancadas estão com a alma e a respiração em suspenso.
Por sua vez, o adversário toma balanço, depois de ajeitar a bola, no local da grande penalidade, precisamente a onze metros da linha de golo, concentra-se e ainda não tomou a decisão, da direção do chuto, se vai bater rasteiro ou a meia altura, espera o apito para desferir o seu potente remate, está a minutos da glória ou do Inferno, sorri interiormente, depois um arrepio o trespassa.
O marcador do penalti ouve o apito do árbitro, parte decidido para o esférico e desfere com o seu pé direito o seu potente pontapé, a bola sai como um míssil e voa rumo ao vértice superior direito da baliza, no peito do marcador, uma alegre expetativa regurgita, o guarda-redes estira-se num extraordinário golpe de rins e com as pontes dos dedos desvia a trajetória do remate.
O esférico bate com estrondo na barra junto ao poste e desce na vertical em direção à linha de baliza, faz-se um silêncio no estádio, os olhares convergem ansiosos, para o homem de negro, o tempo da decisão parece demorar séculos, o árbitro está aparentemente calmo, parece ir buscar ajuda aos seus deuses ou talvez ao instinto.
Uma pergunta perpassa pela assistência, a bola passou ou não a linha de baliza, ao juiz da partida, toda a sua vida foi lhe pareceu em vão, nesse preciso momento, ainda levou o apito à boca, esse objeto que tantos amargos de boca e algumas alegrias lhe trouxe.
O árbitro não realiza qualquer sinalética que permitisse antever o sentido da sua decisão, dirige-se para a linha lateral junto ao meio campo, não parece estar a fugir, simplesmente regressa aos balneários, sem medo, mais sereno que nunca, a única decisão honesta, justa e equilibrada na sua rápida e tanto quanto possível ponderada reflexão, era uma não decisão.
Optou de forma irrevogável por pendurar as chuteiras e o apito, depois de muito ajuizar, naquele tremendo instante, vislumbrou algo de muito mais delicado e a que até ali atribuíra pouca relevância, a sua tolerância em conviver com a banalidade do seu erro em comparação com o dos outros.
Lisboa, 13 de junho de 2017
Carlos Vieira

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A piedosa interpretação de uma natureza morta


Foi o primeiro investigador criminal a chegar junto do cadáver, deparou-se com o cabo esculpido em madrepérola do punhal, no peito da vítima, no meio de um auréola de sangue e um rasgo vertical na camisa branca desfraldada
anotou num pormenor de um botão que navegara num rio vermelho que tivera a sua nascente debaixo do corpo
em decúbito dorsal
enfiava as luvas de borracha e olhava um pouco mais inquisidoramente o rosto do indivíduo mas este manteve-se em silêncio a olhar para o vazio
enquanto isso, somente a barba de três dias lhe sobrevivia, procurou afastar os seus ancestrais pruridos de tocar no corpo sem vida, aperceber-se da progressão da rigidez cadavérica, foi afinando a sua relação com o morto e com a morte
na televisão acesa prosseguia mais uma etapa do Tour de France, enfatizava-se a distância dos fugitivos para o camisola amarela mas a sua meta era agora outra, procurou distanciar-se dos estímulos que o cercavam
avançou na sua busca de respostas, nas mãos e nas unhas bem tratadas do finado arquitecto que não metia pelos vistos mãos na obra, que medidas terá falhado? que ausência de luz não lhe permitiu evitar a sombra
ou melhor se defender do inimigo que o derrubou?
tudo leva crer ter existido luta, não sendo tarefa fácil lidar com aqueles noventa quilos de peso, continuou sozinho
a lutar com as suas dúvidas e a sua sede, a matutar, a erguer os primeiros cenários
enquanto os colegas dos homicídios e do local do crime não chegavam, interrogava-se que inimigos poderia ter
um homem solteiro de cinquenta e cinco anos aparentando estar bem de vida, que lado negro ainda lhe poderia esconder, que culpa a vítima poderia carregar e levar consigo
percorreu o chão à volta do Vasco cidadão tentando encontrar outros vestígios e detalhes, a olho nu, salvo um chinelo de uma marca conhecida que ali estava à deriva, era uma mancha de veludo no soalho flutuante, antes do sofá de pele, paquiderme inanimado, tudo parecia padecer de uma estranha arrumação
uma cascata de luz dos “led" espraiava-se pela sala, iluminando a encenação das amálgamas de gente e de bichos a penderem dos vértices dos quadros de arte contemporânea, espreitavam-lhe agora o desvelo de investigador curvado, uma inusitada “madona" piedosamente atenta àquele corpo familiar surpreendente simulacro de amor
preocupado em eliminar hipóteses e sedimentar certezas tinha entrado em módulo de imersão total, naquela cúmplice solidão de quem já não tem mais nada dizer e de quem somente agora começou a perguntar, sempre
demasiado tarde, com maior ou menor oportunidade
verificou a cicatriz antiga de uma fractura da tíbia e perónio, observou as partes mais íntimas despudoradamente
e prosseguiu até à zona onde a lâmina penetrara fulminante na epiderme, independentemente da opinião da medicina legal, procurou perceber ângulos de entrada e reconstituir o gesto do agressor
na retaguarda gerou-se um expectável sururu, alguém dava gritos que iriam culminar em choro, o defunto
não ficou, particularmente, impressionado e tão pouco o inquiridor
continuou a viagem rumo ao pescoço, sondou a boca entreaberta, os olhos agora cegos, deviam ter sido acutilantes, habituados a definir rumos e traços precisos, o nariz adunco e as orelhas quase agudas,
acentuavam-lhe um lado fantasmagórico
teve um súbito arrepio, devia esperar que o colega o ajudasse a virar um pouco de lado o cadáver, para lhe verificar as costas, percorreu com o olhar o tampo de secretária, ali próxima, forrado com pele verde alguns papéis amarfanhados pareciam pássaros desesperados, em preparação para levantar voo, ficou esperançado em encontrar naquele frenesim de papel, alguma explicação dos enigmas que o assaltavam e a definir a direção das múltiplas que o levaria até ao autor
respirou fundo e olhou à volta, era melhor esperar pelos colegas que duas cabeças podem chegar mais longe que uma, vasculhou a cinza de uma lareira com uma tenaz e no final, apenas o pó de uma antiga chama ou de um desvario
foi junto ao parapeito de uma janela que entreabriu, pela frincha deixou entrar uma breve corrente de ar e encheu os pulmões e deixou o seu olhar sobrevoar o circo dos néons e pirilampos das viaturas da polícia e dos bombeiros
e voltou para dentro de si, que raio se passou aqui? a morte com punhal já não se usa, nem há romanos, nem florentinos, nem nevoeiros londrinos, na hodierna traição a morte é uma benção
Lisboa, 24 de Julho de 2016
Carlos Vieira

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Memórias de Verão I

Memórias de Verão I
Foi numa noite de final de junho, ainda vinha até mim o murmúrio das conversas nas esplanadas misturando-se
com o estrugir das marés ao fundo, a maresia e o perfume dos cafés produziam uma estranha excitação o reencontro da melancolia estival. Estava cansado resolvi ir dormir.
Porque depois suceder-se-ia o passeio nocturno na marginal, de um lado, os automóveis ruminando de mansinho, os namorados de mãos dadas com promessas vagas, as famílias a lamberem colectivamente gelados de cone de baunilha e chocolate e conversas desinteressantes e despreocupadas, do outro lado, a brisa marítima e a areia molhada, haveria matizes de azul conforme havia lua ou era varrido o mar pelo farol, nos olhares sorriam romances de espuma e em silêncio engendravam-se projectos de tudo ou nada com filas de barracas brancas vazias.
Nessa altura acordei estremunhado, com o ruído dos bombeiros a entrarem pela janela, tinha-me esquecido da porta fechada com a chave por dentro como nos sonhos, junto à minha cama, ouvi uma voz feminina surpreendida de anjo com capacete que comentava:
"- Mas o seu filho já é tão grande!"
Lisboa, 13 de junho de 2016
Carlos Vieira

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Amou tanto

Amou tanto
Agora era velha e não conseguia sentir-se tomada de qualquer sentimento em relação a coisa alguma, mas tinha amado muito. Esperava ainda encontrar-se com algum ser que se movesse sobre a crosta da terra.
Até que se enamorou pela fachada de uma igreja de Assis, decidindo mudar-se para aquela cidade. Era Inverno, e durante os temporais nocturnos, saía com o guarda-chuva para fazer companhia à igreja, plena de uma luz amedrontada.
Depois, chegou a Primavera, e todas as manhãs e todas as tardes, com as mãos, tocava as pedras quentes e enxutas. Foi um amor sereno e sem traições que durou até à sua morte.
Tonino Guerra, "Histórias para uma noite de calmaria"

sábado, 26 de março de 2016

Travessa da Espera

Aqui estou eu, oito da tarde, no lusco fusco da Travessa da Espera.
Na verdade passamos uma vida inteira à espera. Desde logo, de saber se é menino ou menina, de sair do conforto da bolsa de líquido amniótico, de conhecer o agreste contacto com a atmosfera e todas as minudentes contingências da vida. Enquanto isso, um pai explora na sala de espera, meticulosamente os ângulos mortos e metros quadrados, rói as unhas, aguardando o seu primeiro filho, outro na sala de partos, olha de olhos arregalados, para a sua esposa que estrebucha e grita desalmada, enquanto o pessoal médico e auxiliar se engalfinha, à volta da marquesa e das pernas abertas para extrair, de uma amalgama informe, de placenta, o ser humano mínimo e cortam definitivamente, o cordão umbilical, tudo e todos ensanguentados, e a seguir eis algo que berra, extraordinariamente.
Depois, bem depois, podemos vê-los, esses seres nascidos mais sou menos renitentemente, esperando que não nos dêem trabalhos e preocupações, apenas alegrias e redenção, após esperas de horas sem dormir ou de fazê-lo aos solavancos, em casa, nas urgências dos hospitais a dormitar.
No fundo, o mundo transforma-se para muitos de nós uma enorme sala de espera e num somatório de momentos de esperança, porque mesmo nos momentos em que já a perdemos, e estamos no corredor da morte de todos os sonhos, uma chama continua acesa dentro de nós, uma flor bruxuleante, intrépida, resiste à brisa que não se fez anunciar.
Lembras-te quando te esperava no altar, eu e Cristo ambos pendurados à tua espera, num ridículo smoking, aba de grilo para a cerimónia alugado, ainda hoje, estava ao mesmo tempo desesperado, não fosses tu desistires à última hora ou seria esse o meu secreto desejo, perante a dúvida, de uma vida de casado que não sabia, se iria aguentar ou estava preparado!
Depois veio tempo das viagens, de aguardar o voo da TAP, das 20h00, no Aeroporto de Shipool, de aguardar nas filas os procedimentos de segurança e despejar dos “ necessaires" os objetos pessoais, expostos espalmados na máquina do raioX como robalos escalados, naquele despe e veste de mais uma revista de segurança, antecedido, por um “ por favor não se importa!" e de nós que só esperamos que não nos leiam os pensamentos, ali ao lado confinados com o olhar de desespero das raparigas correio, recém chegadas, de um qualquer aeroporto da América do Sul.
Entretanto, dirigimo-nos à porta, lá fora,esse draft imenso de um arquitecto paisagístico louco, esse grande jardim de geometria variável, de luzes e néon e pistas com cores de noites solitárias acompanhadas de gin, azul turquesa e do roncar dos aviões, aterrando ou a levantar, interrompidos por uma voz pueril e feminina, traz-nos de volta à realidade, pede a todos desculpa pela chegada tardia da aeronave, nós aguardamos, compramos mais uma inutilidade, nessa terra de oportunidades que são as “free-shops”.
Esperamos no dia seguinte, a consulta que tinha sido adiada, já com a carapaça das inúmeras esperas, em que raramente fomos surpreendidos, ali sentados frente aos bebedouros da sede de vida vivida, de água fresca ou natural, das línguas pendentes das senhas, da democracia organizada, em fila e com os olhos no placard da consulta de oftalmologia. Ali estão sossegados os cidadãos utentes, os que vêem mal ao perto ou ao longe, os que nunca viram e os que deixaram de ver, entre muita gente invisível, estamos à espera uns dos outros, esperamos a nossa vez!
Muitos são os chamados e poucos são os escolhidos!
As funcionárias com seu sorriso administrativo, por detrás dos balcões, percorrem com destreza o teclado, sem deixar de estarem atentas ao écran do computador, depois o seu olhar regressa do espaço sideral ao nosso contacto,debitando as suas mensagens claras, o preço , os seus exames e a próxima consulta, concluindo com “As suas melhoras!"
"Espere sentado ou você se cansa!”, verdade que tenho seguido à risca esse Bom Conselho, de Chico Buarque, claro que a tal acrescento a minha grande preguiça, algo que ajuda a ter paciência e a ser um pouco mais resistente à espera. Deixo para amanhã o que posso fazer hoje, isso precipita os prazos e a necessidade de correr atrás dos autocarros.
Saber esperar nem sempre é uma grande virtude, porque entretanto a vida vai-se esvaindo e nós desperdiçamos todo esse tempo, a aguardar o impossível e o improvável.
Também é certo que a ignorância nos atraiçoa, pois o tempo da maturação, leva-nos a sofrer antes de tempo e a esperarmos na paragem, quantas vezes a horas o comboio errado.
Estamos agora à espera da Primavera, essa estação da esperança, no entanto quantas vezes esperamos mais do que aquilo que ela nos pode dar, nestes tempos em que tudo, parece estar mais previsível, as estações nos surpreendem com os fenómenos mais desagradáveis e inesperáveis.
Aqui vamos no caos do tráfego da grande cidade, navego não conduzo, nos automóveis do crepúsculo muitos solitários, enlouquecidos, regressam a casa, ás suas zonas de conforto, mal podem esperar ou será que fogem do que os espera?
Os semáforos lá vão levando a sua vida de alternar as cores, testemunhas de insultos, buzinas, do pára arranca, flores de metal resistentes às pequenas nuvens de fumo, esses legados rasteiros que os escapes deixam em branco, sem legendas.
Aqui estamos todos à espera da morte ou que morte nos liberte deste compromisso de cumprir a vida e de gerirmos tantas expectativas, de levarmos de vencida o tempo, esquecendo-o, tornando-nos assim imortais desconhecidos, nas travessas das esperas dos bairros altos deste mundo.
Lisboa, 5 de Março de 2016
Carlos Vieira


domingo, 27 de dezembro de 2015

Mulher com três caniches debaixo das palmeiras


Saio da garagem e no halo de luz que o portão oferece, na sua lenta ascensão, no jardim de fronte erguia-se uma mulher de meia-idade, de pé, nos seus cerca de 1,80 de altura de glamour, elegância e óculos escuros.
Não posso jurar que era loura ou se foram os raios de sol que me encadearam. Arrastavam-na pela trela, três caniches que iam à sua frente como se fossem batedores. Percebi o olhar insinuante, nele um fulgir de sensualidade, outras vezes, um prelúdio de sono, o que fazia sentido pois era meio-dia.
Pergunto-me como pude ver tudo isto num relance e com a mão no volante? Passei por ela, o mais devagar que me era permitido por lei, esfreguei os olhos ainda incrédulo. A centenas de metros dali voltei para trás, queria ver melhor se era um sonho ou visão, tocar-lhe não ousaria.
Cheguei de novo ao local da cena e afinal já tinha desaparecido, escapuliu-se, nem sombra, só havia deserta a pequena esplanada e impávidos, os bancos verdes do jardim.
A explicação mais consistente é que era uma mulher que só tinha existido como tantas outras, nas sessões de cinema da meia-noite do Quarteto, no celuloide dos primeiros filmes americanos, dos anos cinquenta, agora recuperados e pintados a cores pastel e no entanto, mudos como eu tinha ficado.
Tratou-se pois e isso é que fica para a posterioridade, de uma aparição cinematográfica debaixo das palmeiras para nos salvar da rotina, algo de tropical, será que esta também provoca alucinações, seria um milagre, pura tentação, pareceu-me excessivamente teatral mas deixa-me ainda, esta agradável ilusão de poder ter uma diva por vizinha, criada a partir do nada e da câmara escura da minha garagem.
Lisboa, 30 de novembro de 2015
Carlos Vieira

domingo, 13 de setembro de 2015

Poema para uma deusa adolescente que fugiu do 1.° andar da Praça Navona





Este é mais um texto que era para ser mais um poema menor, como são todos muitos que se alimentam de um amor maior pelos deserdados nas praças desta vida.
Conta mais uma história de uma princesa, da sua clausura numa torre de marfim, não fala dos seus algozes e de si mesma ou da sua tristeza infinita, nem aborda ao de leve a sua grande loucura, o seu amor desesperado, impossível, que foi o seu veneno e também e sua cura.
Não é esquecido o reino ao abandono, o seu fado, esse canto que se confunde com choro abafado e probreza envergonhada, onde com pouco esforço se escuta a percussão de grilhetas e nos tambores feitos de pele dos escravos as vergastadas do silêncio.
Na fonte da Praça sacia-se o mármore dos deuses e um menino louro com síndroma de Down toca realejo.
Escrevo um poema de uma princesa anoréctica, triste quase sempre, que numa noite de insónia foge pelo lençol das entrelaçadas palavras em surdina, para os braços de um sonho, braços que a libertaram da cruz dos garrotes num país esgotado, mártir que resiste, estranhamente ágil, salta para a garupa da incoerência, do corcel de ébano.
Joana d'Arc tatuada com coroa de piercings e de alma devorada pelo fogo, a sua cabeleira vermelha de bruxa ao vento desgrenhada, ergue uma espada de crua luz fluorescente, que roubou do guarda-roupa de um figurante do Star Wars.
No meio desse nevoeiro artificial, truncada descoberta de um novo tempo, limpo, sem compromisso, deusa deserdada, refém desse amor maior que nunca se entrega e que só com a sua morte a liberta, do Palazzo do 1.° andar da Praça Navona.
Este é um poema de uma princesa romana sem história.
Roma, 11 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

sábado, 6 de dezembro de 2014

Apontamentos erótico-poéticos / Incidentes bocágicos I



Toda a gente sabe que Elmano " o ladino" gostava de cagar de alto e terá comentado
que alguém debaixo da figueira, até pelo traseiro, o "cu-nhecia", diga-se, por aquela passagem que se tratava de um profundo "cunhecimento", do lado mais escatológico
do poeta.
Aliás, este amarinhar de árvores, servia-lhe a dois tempos. Num primeiro momento, para o aliviar de necessidades, num segundo de inspiração, à sua veia poética, de ave mais lírica pousada no seu ambiente.
Terá contado certo "espreita" que quando o bardo para ali estava de pirilau ao léu, após noite de maior moina, se terá aproximado um bichano lambareiro que, por milímetros, não se alambazou da pendente parafernália, e não fora um estremecimento súbito
o ter desequilibrado, fazendo-o cair, qual maçã podre e o lúbrico escriba, ver-se-ia destituído de alguns dos seus mais relevantes argumentos, por vezes, para a sua prosápia e verborreia e outras, para tão distinta grandiloquência.
Nesses tempos em que instalou forte polémica entre os que defendiam a sátira mordaz e certeira, em contraponto com o ritmo da lírica límpida, comentava-se por alcovas e lupanares, agora só Bocage nada de Camões, os defensores de uns e outros, digladiavam os mais arrevesados argumentos e diz quem viu que muitos acérrimos defensores dos poetas, terão chegado a desembainhar os bacamartes e chegado mesmo a vias de facto.
Rezam os "anais" que Elmano esse descaradão moreno passeava o seu esplendor, já decadente, pela Avenida Luísa Tody e que certo dia no lusco-fusco, foi puxado o vate pelo gibão, para as trevas de um beco, por mão com energia e pêlo de urso, essa força da natureza, por certo pouco sensível às sátiras, ali lhe atestou tamanho "enxerto" que nas semanas seguintes ficou de molho, lambendo as feridas e sem poder pegar na pena.
Tal tenebroso evento, levou a que se afastasse dramáticamente da dama que até ali, lhe tinha ocupado, entre outras coisas as meninges e que tinha adornado as daquele colosso brutamontes que desconhecia as ambivalências e a falta de oportunidade das grandes paixões que o devastavam e o deixavam cego. 
Agora com um olho "à Belenenses", ficou com o miserável aspecto e semelhanças do famigerado autor da epopeia, que elegeu como inimigo fidagal.
 

Lisboa, 5 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira





sábado, 1 de novembro de 2014

A morte está de passagem



As fitas brancas a dizer polícia, em azul, delimitavam uma parte do passeio e da avenida, elegiam um jardim improvável, a irromper no meio do asfalto. À volta do cenário, pirilampos azuis e vermelhos, os focos de algumas lanternas, ocupavam-se dos diferentes ângulos da ocorrência, de iluminar as diferentes versões e objectos.
Havia um sorumbático candeeiro a uns dez metros do local do crime, não se tratava de um acidente como muitos acreditavam, um atropelamento com fuga, quanto muito. Ali e acolá néones publicitários, lá prosseguiam a sua estratégia de marketing, indiferentes ao turbilhão de emoções que hoje, teve ali o epicentro.
Algumas janelas dos prédios contíguos faziam o tal puzzle de luzes, de intensidade diferenciada, alguns residentes comentavam, de forma mais ou menos apaixonada, à janela com os vizinhos a completa ignorância do que se tinha passado, naquele evento noturno, outros permaneciam em silêncio e aproveitaram para mais um cigarro.
Os peritos forenses, nos seus fatos de anjo vestidos de branco, procurando ser objetivos dão asas à imaginação, em busca desesperada do vestígio imaculado e do pecado.
Os investigadores criminais rodopiam, indagam, procuram o móbil, confrontam, enfrentam a mínima luz, afastando a sua própria escuridão e morte, perguntam às testemunhas, aos técnicos, aos desconhecidos suspeitos, ao corpo, feito cadáver. Por momentos, nas palavras daqueles e nos seus gestos, um pequeno interregno, naquilo que será a solidão eterna.
Entre lágrimas e suspiros os familiares olhavam para o cadáver, incrédulos, perguntam-se como pode ter morrido, aquele que era uma pessoa boa, que não fazia mal a uma mosca, assim, desta forma no meio da rua, sozinho, desconheciam as palavras do poeta “que seja eterno em quanto dure”, a vida e o amor.
Comenta-se à boca calada que foi alvejado, que se ouviram dois ou três disparos, pelo que a arma poderia ser um elemento determinante, para se poder chegar ao autor.
Será que o mesmo não a deixou por ali, dado que agora a mesma queima, apontando a partir de agora, sempre para a sua responsabilidade ou será que o autor é um facínora, requintado homicida que tem uma fria relação, vingando a sua vontade, a utilidade permanente da arma do crime.
Poderia estar por ali, atirada para o seio de alguns arbustos, alguns metros à frente do local do crime, era necessário realizar desde já, buscas exaustivas.
Os curiosos foram-se afastando, o corpo foi levado para o IML, foi saindo de cena quem não era de cena, apenas as viaturas da polícia, as lanternas como enormes pirilampos foram alargando a área de investigação.
Verificavam esconsos, sargetas, papéis caídos na via pública. Os flashs das máquinas digitais que foram registando para mais tarde recordar. Os diversos croquis ultimavam-se, tentando esquematizar a emoção e o caos que se passaram no lugar do morto.
Foram-se apagando as luzes dos prédios, ouviam-se murmúrios e sussurros dos investigadores e da vizinhança.
Três tiros, pelo menos, tinham troado e relampejado, que ninguém ouvira ou vira, ninguém se compromete, igualmente, ninguém conhece a vítima que vivia há anos, a cerca de cinquenta metros do local.
Por fim, um grito de alegria ergueu-se estranhamente no adiantado da noite fria, um investigador, apontava para o meio de umas ervas altas, num campo ali próximo e dizia para os colegas. “ É um 38, é um 38!”
Num snack ali próximo já fechado, o proprietário comentava com um cliente que aquilo tinha sido um problema de trânsito, entre a vítima e um peão que se tinha insurgido na passagem da passadeira com um indivíduo que se deslocava num Audi, cinzento metalizado, o qual tinha tido difícil anuência em o deixar passar. O indivíduo de meia idade, saiu do carro sem dizer uma palavra, dirigiu-se ao peão e deu-lhe três tiros a dois metros, quando o mesmo se virou para ele.
Soube-se mais tarde que o autor era um comerciante que se dirigia a casa, a explicação que deu para o horrível acto que cometeu foram os seguintes, o negócio com esta crise estava mau, acabara de ter mais uma discussão ao telemóvel com sua mulher, por estar sempre a chegar tarde a casa.
Mas o copo de água foi aquele indivíduo que não passou, passeou pela passadeira, que lhe virou as costas, nem sequer lhe agradeceu, estava assim a pedir para ir passear para outro mundo.

Lisboa, 1 de novembro de 2014
Carlos Vieira




sábado, 18 de outubro de 2014

Chiaroscuro



No mobiliário branco de design contemporâneo à minha frente, sentaram-se duas mulheres de óculos escuros, pediram dois galões, um claro e o outro escuro, as suas roupas eram desportivas e escuras.
Somente os generosos decotes das suas camisolas de tecido leve, de onde ressaltavam seus peitos ebúrneos, contrastavam com a sua atitude recatada e cúmplice, iluminava-as a sua atitude despretensiosa, depois apercebi-me da clarividência dos seus comentários, aconteceu seu riso cristalino.
Não olharam uma vez para mim que era o único cliente do café, omnipresente na ilha da minha mesa branca com os poemas espalhados como barcos numa planície gelada.
A verdade é que para algumas pessoas, nós não somos mais que uma noite escura como o breu, algo que existe na penumbra, na sua sombra ou então somos transparentes.
Tenho ainda uma outra explicação, existem pessoas que tem um raro faro para evitar os solitários e uma aversão incontrolável ao mistério.

Lisboa, 17 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


Foto de Lloyd K. Barnes

Fui a Matosinhos...



Fui a Matosinhos, em dia de aviso laranja, o mar erguia castelos de espuma, ninguém conseguia
descortinar nem novos, nem velhos  horizontes, as rajadas de vento varriam das ruas, os papéis e os mais corajosos transeuntes.
Nem me reconhecia de cabelo desgrenhado, reflectido na montra, um perfil actualizado de Ernest de gravata e muito menos génio.
Só voltei a mim, a alguma serenidade na admirável textura do arroz de polvo e dos taninos alentejanos. 
Diria pois que não só se morre pela boca mas também se renasce naquele restaurante de que não me lembro o nome em Matosinhos.

Matosinhos, 16 de Outubro de 2014


Carlos Vieira

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Casa em ruínas

Na ruína, de paredes eram meia dúzia, resistem ainda duas janelas, dois olhos vazos que nos expõem o interior da casa. Destelhada, continuam de pé uma daquelas portas em duas folhas e com bandeira, de tinta ressequida, de um verde velho a descascar.

As maçanetas ainda ninguém as levou, pode algum desgraçado, procurar abrigo, bater à porta, ela dará resposta, escutando-se do lado de dentro um vento familiar, sem se aperceber que se encontrava ouvir a si mesmo, numa noite de ventos uivantes, depois pode ali repousar e descansar "os ossos", a céu quase aberto.

Percorrida a habitação apenas uma arca de pinho, a apodrecer a um canto, daquelas antigas, onde se guardava a ervilha, o feijão e outros legumes.

Cresciam uns tufos de ervas, aqui e ali esventrando o soalho. Das paredes de caliço esbranquiçado, trechos de ferrugem lacrimosa, escorriam de cima das parede de adobe ou das frestas que foram fazendo a sua assinatura.

Percebia-se a lareira, não restava, um aroma da comida ali cozinhada, nem um ronronar de histórias para adormecer ou para nos manter acordados, uma ladainha de preces, memórias de fomes e farturas.

Ali estava um despojo de navio vagamente familiar, no baldio abandonado, a vaguear nas suas quatro assoalhadas, desaparecido na guerra ou num colapso do terramoto.

Eis pois, perante vós, a imagem daquilo que resta de um lar que se desfez, da desertificação de um país que o fluxo migratório e o magnetismo das cidades acentuou. 

Estas são algumas das explicações que temos mais à mão, para aquela ruína, tão válidas como outras quaisquer. 

Porém, reconstituir os lugares, esses anónimos territórios, estes ninhos de amor perdidos no tempo, ainda nos aquece, nestes dias frios, do fim de Maio.

Lisboa, 21 de Maio de 2014

Carlos Vieira

terça-feira, 15 de abril de 2014

Eis-me aqui cercado do verde irlandês...

Eis-me aqui cercado do verde irlandês, das pastagens, das sebes, dos renques de árvores, que fazem de fantasmas desgrenhados contra o pôr-do-sol. o horizonte distante e eu neste quarto de hotel, amarrado contra à minha pele, a expôr o meu ponto de vista, todo muito cinzento, como deve ser. cumprindo este desígnio de lamber papel e fazer de conta que descobri o ovo de Colombo ou que inventei a roda. lá fora o sol brilha insistentemente, e pela vidraça, imaculada, vinda da direita para a esquerda, a aparição de uma bicicleta vai pelo campo fora, duas rodas e uma rapariga de jeans, tudo tão sereno, pueril e harmonioso, nem a corrente salta da cremalheira, e eu que procurava  alinhar as ideias e dar-lhe sequência e ritmo, perdi-me na dissertação, perante o consórcio de observadores, sempre atentos à mínima falha e que nestas coisas dos eventos internacionais, tem outra pedalada.

PortLaoise, 15 de Abril de 2014
Carlos Vieira



sábado, 8 de março de 2014

O desencontro

Chegou à porta da sua casa no beco sem saída, o seu coração bateu desesperadamente, esperando que não fosse tarde, irremediávelmente tarde. A noite estava escura como breu ponteada, por uma ou outra luz acesa nas casas.

Veio a voar com várias hipóteses de acidente, por milímetros e infrações graves pelo caminho. Na sua cabeça, só havia espaço para o ruído crescente, ensurdecedor, das suas últimas palavras. Esperando que as mesmas, não tivessem sido as últimas.

Nem reparou que um vizinho, olhava inquieto, umas vezes para si e depois para a janela do primeiro andar, onde um profundo silêncio e vazio reinava. Não era um bom sinal, ali existiam meia dúzia de casas e de carros, pelo que ela já reconhecia o ruído do seu, um agonizante Golf, de dez anos de maus tratos. 

De modo que quando saía da viatura, logo se deparava com aquela confluência feliz do sorriso dos lábios e do olhar a pairar, por cima da floreira e a mão dela tão delicada, a afastar a cortina de renda branca, que coava a luz e elegia a sua esbelta silhueta.

Não foi o que hoje aconteceu, pelo que agora aguardava ansiosamente, que ela lhe abrisse o trinco que conhecia, ao cimo das escadas. Arrombaría a porta, se dentro de poucos minutos não houvesse resposta do outro lado.

" -Não aguento mais! Vou cometer uma loucura!"

Foram as suas últimas palavras ao telefone, as mesmas contrastavam com a aparente serenidade do seu último encontro. Sendo certo que o trabalho do escritório não lhe tenha permitido nos últimos dias acompanhá-la como devia, nada fazia prever, o dramatismo com sabor a ultimato daquelas palavras, não só para si mas tambêm para ela.

Já se preparava para ganhar balanço e deitar a porta abaixo, quando o vulto de um homem de alguma idade, envolto na sombra um pouco familiar, lhe perguntou com acento vagamente ameaçador.

 "-O que é que o senhor quer? Não acha que não são horas de incomodar as pessoas?"

Perplexo, acenou algo que se podia confundir com uma desculpa, meteu o rabo entre as pernas e deu meia volta. Na sua cabeça zuniam inúmeras interrogações, abismos, silêncios inexplicáveis, o implacável avanço do vazio, da perda, do futuro da ausência e da perda de sentido.

Chegou a casa, não sabia por onde passou, guiou como um autómato, teve uma estranha dificuldade em estacionar. Retirou do bolso o molho de chaves, não reconhecia qual delas era a do seu apartamento. 

Abriu a porta e foi só devido àquele inesperado caos que se instalou no seu coração e cabeça 
que não se deu conta, de que um perfume pairava no hall de entrada. 

Subitamente, sentiu os braços daquela mulher que julgava perdida em seu redor e suas pernas em tenaz a impedirem-no de avançar, de partir.

"- O meu pai apareceu lá em casa e vai ficar uns dias. Não conseguia estar mais tempo sem te ver, meu amor!"

Lisboa, 8 de Março de 2014
Carlos Vieira

Flash VI



Trazia barba de meses e sobretudo de anos, desemprego de longa duração e um olhar de bicho a condizer, de quem transporta resignado a sua cruz.

Vendia pensos rápidos ao desbarato para sobreviver no exílio do seu próprio país, gravemente ferido, vendido agora ao desbarato, depois que viveu acima das suas possibilidades, proclamam alguns peritos em economia e em estudar factores de sustentabilidade.

Havia condutores que abriam os vidros e lhe davam umas moedas, não queriam os pensos e hoje tudo lhe iria correr melhor, uma boa acção por dia.

Havia aqueles que abanavam a mão de dentro dos automóveis, que trabalhavam, que pagavam religiosamente os seus impostos, nem se dignavam a olhar e seguiam em frente, aqueles que tinham horror a pobres e (ou) contaminações.

Todos nós esquecidos dos pequenos ferimentos que podem infectar e dos pequenos gestos que podem salvar vidas, pensou um condutor que falava com o homem de barba hirsuta e a saliva na comissura dos lábios. 

Surpreendeu-o o facto do sem abrigo saber falar e ter ideias muito arrumadas. "Desculpe tenho que avançar, porque já estão a apitar! Gostei de falar consigo!"

Aqui estamos nós, em farrapos, tantas vezes espectros assaltados, por precários reflexos das nossas pequenas mortes diárias, só porque estamos distraídos.

Porque não respeitamos os sinais, não somos previdentes e poupamos, dizem os arautos da ponderação, acabamos a vender penso rápidos, Cristos coroados de espinhos, nas encruzilhadas das nossas curtas vidas.

Lisboa, 8 de Março de 2014

Carlos Vieira

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Mãos no ar! Isto é um assalto!

- Mãos no ar! Isto é um assalto!
A empregada do balcão obedeceu prontamente, olhou aquele homem de gorro e máscara, a arma poderia ser um brinquedo de miúdos, era Fevereiro, Carnaval. Os seus óculos graduados começaram a ficar embaciados e uma gota de suor descia-lhe pelo lado esquerdo do rosto.
O assaltante aproximou-se de si, apenas para a revistar, foi então que reconheceu aquele perfume e desmaiou, caindo de novo nos braços do único ladrão que a roubou na vida.
Ouviu-se o estâmpido de um tiro, um disparo acidental e o estrépito da arma caída a deslizar no chão imaculado do azulejo.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira



quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A propósito das moscas

“ Eu sou a minha liberdade!”
As Moscas
Jean-Paul Sartre



“Se eu fosse mosca!” é uma expressão que não me ocorre, não é que não seja também, picado pela curiosidade, como um qualquer simples mortal , também a tenho, por algumas coisas, quase mórbida.
Mantenho contudo com elas, uma relação, pouco cordial, escatológica, só porque não respeitam a distância, de que delas procuro manter, só porque, me parecem seres que se adaptam facilmente a qualquer realidade, à merda que fede, porque ocorrem à morte e estão com a situação.
Não lhe arranquei asas na infância, talvez porque, oportunamente me caíram na sopa. Não lhe tenho um ódio visceral, mais um desprezo de estimação, não gosto dessa sua actividade de quem leva e traz, não lhe permitirei ocupação.
Não, não gostaria de ser mosca, isso da curiosidade, do saber, é outra coisa, não tem cheiro ou tem o cheiro a liberdade.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


domingo, 16 de fevereiro de 2014

UM CAVALO MUITO PEQUENO



Eu criei na minha casa um pequeno cavalo. Ele galopa no meu quarto. É a minha distração.
De início, eu tinha algumas preocupações. Eu me perguntava se ele cresceria. Mas minha paciência foi recompensada. Ele tem agora mais de cinquenta e três centímetros e come e digere uma comida de adulto.
A verdadeira dificuldade vem da parte de Hélène. As mulheres não são simples. Um nada de excremento as indispõe. Desequilibra-as. Elas não são mais as mesmas.
“De um traseiro tão pequeno, eu lhe dizia, pode sair muito pouco excremento”, mas ela... Enfim, tanto pior, ela não está mais em questão agora.
O que me inquieta é outra coisa, são, em certos dias, as súbitas e estranhas transformações do meu cavalo. Em menos de uma hora, sua cabeça infla, infla, seu dorso se encurva, se arqueia, se desfia e tremula ao vento que entra pela janela.
Oh! Oh!
Eu me pergunto se ele não me engana ao se passar por um cavalo; pois mesmo pequeno, um cavalo não se desfralda como uma bandeira, não tremula ao vento mesmo que seja por alguns instantes somente.
Eu não gostaria de ter sido enganado, depois de tantos cuidados, depois de tantas noites que passei a velá-lo, defendendo-o dos ratos, dos perigos sempre próximos, e das febres da juventude.
Às vezes ele se perturba por se ver tão nanico. Ele se transtorna. Ou, atormentado pelo cio, ele dá saltos enormes por cima das cadeiras e começa a relinchar, a relinchar desesperadamente.
Os animais fêmeas da vizinhança atraem sua atenção, as cadelas, as galinhas, as mulas, as ratas. Mas é tudo. “Não, decidem elas, cada uma por si, presa ao seu instinto. Não, não sou eu que devo responder.” E até o momento nenhuma fêmea respondeu.
Meu pequeno cavalo me olha com desânimo, com furor nos dois olhos.
Mas de quem é a culpa? Minha?

Henri Michaux

Traduções: Izabela Leal

Excerto de " O Sono" de Murakami

Desde que deixara de conseguir dormir, começara a perceber até que ponto a realidade podia ser banal. Vendo bem, não passa disso mesmo: é apenas a realidade. Logo, fácil de manusear. O trabalho de casa, a mesma história. Como uma máquina: uma vez que se sabe pô-la a funcionar, depois é só questão de repetir os mesmos gestos. Carregar naquele botão, puxar aquela alavanca. Ajustar o termóstato, fechar a tampa, regular o temporizador.


Haruki Murakami, Sono