sábado, 26 de março de 2016

Travessa da Espera

Aqui estou eu, oito da tarde, no lusco fusco da Travessa da Espera.
Na verdade passamos uma vida inteira à espera. Desde logo, de saber se é menino ou menina, de sair do conforto da bolsa de líquido amniótico, de conhecer o agreste contacto com a atmosfera e todas as minudentes contingências da vida. Enquanto isso, um pai explora na sala de espera, meticulosamente os ângulos mortos e metros quadrados, rói as unhas, aguardando o seu primeiro filho, outro na sala de partos, olha de olhos arregalados, para a sua esposa que estrebucha e grita desalmada, enquanto o pessoal médico e auxiliar se engalfinha, à volta da marquesa e das pernas abertas para extrair, de uma amalgama informe, de placenta, o ser humano mínimo e cortam definitivamente, o cordão umbilical, tudo e todos ensanguentados, e a seguir eis algo que berra, extraordinariamente.
Depois, bem depois, podemos vê-los, esses seres nascidos mais sou menos renitentemente, esperando que não nos dêem trabalhos e preocupações, apenas alegrias e redenção, após esperas de horas sem dormir ou de fazê-lo aos solavancos, em casa, nas urgências dos hospitais a dormitar.
No fundo, o mundo transforma-se para muitos de nós uma enorme sala de espera e num somatório de momentos de esperança, porque mesmo nos momentos em que já a perdemos, e estamos no corredor da morte de todos os sonhos, uma chama continua acesa dentro de nós, uma flor bruxuleante, intrépida, resiste à brisa que não se fez anunciar.
Lembras-te quando te esperava no altar, eu e Cristo ambos pendurados à tua espera, num ridículo smoking, aba de grilo para a cerimónia alugado, ainda hoje, estava ao mesmo tempo desesperado, não fosses tu desistires à última hora ou seria esse o meu secreto desejo, perante a dúvida, de uma vida de casado que não sabia, se iria aguentar ou estava preparado!
Depois veio tempo das viagens, de aguardar o voo da TAP, das 20h00, no Aeroporto de Shipool, de aguardar nas filas os procedimentos de segurança e despejar dos “ necessaires" os objetos pessoais, expostos espalmados na máquina do raioX como robalos escalados, naquele despe e veste de mais uma revista de segurança, antecedido, por um “ por favor não se importa!" e de nós que só esperamos que não nos leiam os pensamentos, ali ao lado confinados com o olhar de desespero das raparigas correio, recém chegadas, de um qualquer aeroporto da América do Sul.
Entretanto, dirigimo-nos à porta, lá fora,esse draft imenso de um arquitecto paisagístico louco, esse grande jardim de geometria variável, de luzes e néon e pistas com cores de noites solitárias acompanhadas de gin, azul turquesa e do roncar dos aviões, aterrando ou a levantar, interrompidos por uma voz pueril e feminina, traz-nos de volta à realidade, pede a todos desculpa pela chegada tardia da aeronave, nós aguardamos, compramos mais uma inutilidade, nessa terra de oportunidades que são as “free-shops”.
Esperamos no dia seguinte, a consulta que tinha sido adiada, já com a carapaça das inúmeras esperas, em que raramente fomos surpreendidos, ali sentados frente aos bebedouros da sede de vida vivida, de água fresca ou natural, das línguas pendentes das senhas, da democracia organizada, em fila e com os olhos no placard da consulta de oftalmologia. Ali estão sossegados os cidadãos utentes, os que vêem mal ao perto ou ao longe, os que nunca viram e os que deixaram de ver, entre muita gente invisível, estamos à espera uns dos outros, esperamos a nossa vez!
Muitos são os chamados e poucos são os escolhidos!
As funcionárias com seu sorriso administrativo, por detrás dos balcões, percorrem com destreza o teclado, sem deixar de estarem atentas ao écran do computador, depois o seu olhar regressa do espaço sideral ao nosso contacto,debitando as suas mensagens claras, o preço , os seus exames e a próxima consulta, concluindo com “As suas melhoras!"
"Espere sentado ou você se cansa!”, verdade que tenho seguido à risca esse Bom Conselho, de Chico Buarque, claro que a tal acrescento a minha grande preguiça, algo que ajuda a ter paciência e a ser um pouco mais resistente à espera. Deixo para amanhã o que posso fazer hoje, isso precipita os prazos e a necessidade de correr atrás dos autocarros.
Saber esperar nem sempre é uma grande virtude, porque entretanto a vida vai-se esvaindo e nós desperdiçamos todo esse tempo, a aguardar o impossível e o improvável.
Também é certo que a ignorância nos atraiçoa, pois o tempo da maturação, leva-nos a sofrer antes de tempo e a esperarmos na paragem, quantas vezes a horas o comboio errado.
Estamos agora à espera da Primavera, essa estação da esperança, no entanto quantas vezes esperamos mais do que aquilo que ela nos pode dar, nestes tempos em que tudo, parece estar mais previsível, as estações nos surpreendem com os fenómenos mais desagradáveis e inesperáveis.
Aqui vamos no caos do tráfego da grande cidade, navego não conduzo, nos automóveis do crepúsculo muitos solitários, enlouquecidos, regressam a casa, ás suas zonas de conforto, mal podem esperar ou será que fogem do que os espera?
Os semáforos lá vão levando a sua vida de alternar as cores, testemunhas de insultos, buzinas, do pára arranca, flores de metal resistentes às pequenas nuvens de fumo, esses legados rasteiros que os escapes deixam em branco, sem legendas.
Aqui estamos todos à espera da morte ou que morte nos liberte deste compromisso de cumprir a vida e de gerirmos tantas expectativas, de levarmos de vencida o tempo, esquecendo-o, tornando-nos assim imortais desconhecidos, nas travessas das esperas dos bairros altos deste mundo.
Lisboa, 5 de Março de 2016
Carlos Vieira


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