sábado, 31 de outubro de 2015

Mais um poema para um sem abrigo numa noite de Outono



escuta
nos paralelepípedos do granito molhado
pressurosos passos
a queda de um corpo

espreita
o luar que insinua um prazer
quase desvendado a arfar na blusa branca
um botão que salta

sussurra
uma porta entreaberta
e um rosto febril por detrás da cortina
esgueira-se um gato

sorria
no seu circunlóquio
o velho alfarrabista a desfolhar o ulmeiro
pousa-lhe um pássaro no olhar

olvida
no gume do silêncio
a ferrugem que é estertor do tempo
sangue vivo na lâmina

chove
só as bátegas de água na casa
primeiro andamento de sonata de Outono
memória dos seus dedos

corre
na fonte uma água antiga
na sua fronte corre água da chuva
insaciável

cala
a dor e a morte que se acentua
e o Inverno que se avizinha e a perpetua
sem saber escolher as palavras

observa
as luzes dos faróis a ofuscarem
a supremacia da noite e o vagar dos animais
tem as calças rotas e o coração suspenso

adormece
nada está conforme
amanhã será despejado e dorme a sono solto
sobrevive indiferente à indiferença.

Lisboa, 31 de Outubro de 2015
Carlos Vieira




Nocturno nas margens do Tamisa


I
Observo-te
inquieta e tímida
na penumbra
no biombo
de um verso
da hora da partida
esta noite
vai perder-se
o silêncio
perverso
da tua mão
a pousar
subtil no corrimão
do undergound
em Victoria Station.
II
Apenas
candeeiros
periclitantes
insalubres
e retardatários
regressam
da tua ausência
que se traduz
nas águas
agitadas
do Tamisa
atravessas
na tua gabardine
creme
o caos e a a zona
dos guindastes
consome-te
o desejo
a mim o medo.
III
Devora-te
a solidão crua
da luz
o naufrágio
de transparentes
mistérios
e ângulos agudos
de cristal
devora-te
o precário
o "open space"
a cidade moderna
que se esgota
em espanto
escuto a tua voz
moderada
mansa
e sigo-te
na elipse
sumptuosa
do teu adeus.
IV
Convive
o teu perfume
com torres
e contos
ancestrais
efervescentes
enquanto ali
no leito do rio
o murmúrio
que adivinho
na corrente
do teu corpo
sedento
me aniquila.
V
O que em ti
me seduz
é a elegância
do quase nada
o desespero
de um amor
que por vezes
não corresponde
que não se adapta
que não se adota
o que resta
de ironia
e de um acre
da tristeza
submersa
de um fim
de festa.
VI
Espero por ti
transfigurado
por um dia
no cais
sobre tijolo
da perda
e do humor
britânico
entre especiarias
Índias
reflexos da prata
e do rumor
dos peixes
fora de água
como nós.
VII
Na recepção
vivemos
cumprimentos
molhados
da barbatana
de gravata
e tailleur
e falta de ar
do protocolo
a ponte ávida
aguarda
lá fora
como eu
a tua passagem
por vezes
melancólica
outras
gloriosa.
VIII
Isolas-te
na torre
eu fico
amarrado
à ditadura
do tempo
sempre
cedo perante
a vertigem
do teu semblante
espero-te a cintilar
mesmo
se o nevoeiro
de um qualquer
Dickens
recalcitrante
me negar
de novo
a luz húmida
do teu olhar.
IX
Espero-te
depois de Trafalgar
da vigilância
desajeitada
de um esquilo
e do súbito
espreguiçar
das asas
de um pato real
junto
ao lago do parque
tu receosa
vives camuflada
no musgo
das sombras
nas margens
de ternura
que se mistura
ao luar
temperando
o punhal
da impossibilidade
de em ti germinar
nem que fosse
por uma vez
violento
e impenitente
do amor
o gesto
libertador.
Londres, 28 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Logro


logro
(é) o oscular sôfrego
do lóbulo
logro
(é) o beijo a resvalar
sobre o sobrolho
logro
(são) as tréguas
dos teus lábios
logro
(é) a boca de veludo
polpa de nêspera
logro
(é) da nuca à omoplata
meu trapézio
logro
(é) desengano
ou o fim do mistério
logro
(é) a tua lágrima
preliminar da chuva
logro
(é) o sorriso insólito
um desconcerto
logro
(é) carícia em falso
na curva da face ausente
logro
(é) o teu murmúrio
ser apenas a brisa da manhã
logro
(é) esta singela armadilha
um suave veneno
logro
(são) os fragmentos de silêncio
na memória da pele
Lisboa, 26 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Nova Iorque fora de horas


Uma visita relâmpago
à cidade que não dorme
que se conjuga
no espaço e no tempo
com o seu ego sonâmbulo
e o seu corpo noctívago
ali ao lado
conjugam-se no beco
mal iluminado
a que chegou
notas cavernosas
de um contrabaixo
a voz límpida
de uma cantora de jazz
que lhe faltava
ainda tão jovem
e tão desconhecida
a cidade
que não dorme
dos arranha céus
estremece
de tanto atrevimento
chamava-se Pink Lady
fruta proibida
talvez
apanhada do chão
e agora
estrela que cintila
a grande altura
numa insensatez
de néon
num desdém altivo
de um blues
que lhe lembra o fado
de quem impura
se entrega
de corpo e alma e álcool
ignorando
essa velha história
da maçã e do pecado.
Nova Iorque, 16 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Visão desesperada


Hoje olha-me bem
no fundo do meu olhar
só tu podes descobrir
tu podes ter sido
uma miragem
um de nós pode
não existir.
Halifax, 13 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

De coração ao alto, sobrevoando a Terra Nova


Dormito
o avião “turbula"
uma criança traquina
um velhote
aqui ao meu lado
ressona
um casal atrás de mim
ronrona
a interjeição ríspida
do virar de pagina
do restolhar da folha
perante o leitor
embevecido
tira-me o sono
aquela passagem
a hospedeira
passarela
com dois três recados
guardados
aninhados debaixo
dos seus caracóis
louros falsos
depois de um inexplicável
frenesim
de nuvens
o comandante
anuncia-nos
em voz baixa
a grande altitude
a nossos pés
a certeza
do oceano
inaudível
uma vizinha
do lugar
da fila do meio
no seu olhar lúbrico
como que acena
ao seu lado
sem se dar conta
um homem de meia idade
no seu ângulo morto
que boceja
e cofia a um bigode
fora de moda
para o hirsuto
o avião continua
sem desfalecer
com a sua respiração
pujante
por vezes
parece ter hélices
outras vezes
guelras
agora passamos
ao lado de Goose Bay
eu escrevo
na planície gelada
do écran
cercada
por fragmentos
de gestos
entre a ternura
e o ameaçador
de murmúrios
e de pensamentos
e artimanhas
de desejos
domesticados
pelo mantenha
o cinto apertado
que tremeluz
a ordem
é a que resulta
da exiguidade
do espaço
em que nos respiramos
o mesmo destino
em que decantamos
movimentos subtis
mecânicos
fugazes reflexos
de humanidade
enquanto escrevo
tiro a língua
a uma criança
que olhou para trás
enquanto
neste Boeing 777-300
fomos pensados
para olhar para a frente
entretanto
ouvi a força do vácuo
da sanita
ao abrir-se a porta
do wc ali à frente
observo agora
de um lado o Deer Lake
e do outro a Terra Nova
neste cockpit
da solidão
de um poema
onde estupidamente
me entrego
onde navego
percorro
com o olhar
por debaixo do algodão
das nuvens a imensidão
da superfície
à espera da neve
um caribu
enfrenta a tempestade
e o tempo
com a exuberância
das suas hastes
agora em cada ano
que passa
qualquer distância
atravessada
ou qualquer nada
nos deixa contente
até que uma voz
me desperta
e estremeço
“Senhor, quer café ou chá!"
podia até ser
a voz melancólica
do animal.
Halifax, 13 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Olhar de veludo


De veludo
sem franquia
é o seu olhar
defraglando
o êxodo
dos pássaros
por dentro
da árvore
ancestral
um eco
no corpo
respira
enclausurado
onde transparece
um silêncio
iluminado
na sua pele
que a brisa
suave
de eternidade
enlouqueceu.
Lisboa, 11 de Outubro de 2015
Carlos


sábado, 3 de outubro de 2015

Breviário dos instantes


Sento-me
na madeira escura
de carvalho 
dos bancos de igreja
não vim pedir
perdão de nada
ou atrás do infinito.
Sei que encontraria
ali aquela
a luz velada
que perpassa
pelos vitrais
a discreta
réstia de um grito
da alegria.
Iria ser
banhado
pelos reflexos
imperceptíveis
na subtileza
de um óleo
de autor anónimo
o soluçar línguas
de fogo e dourado.
Vou ouvir
murmúrios
de lanternas
e confissões
o restolhar
das sandálias
no desgastado
calcário
as minhas
a aperta-me
os calos
do dedo grande.
Comungo
do eco gutural
das preces
por debaixo
da cúpula
de tanto
esquecimento
sustentada
no frio das colunas
onde se encostam
abstractos vultos
em recolhimento.
Regresso
à intermitência
das velas
que lá vão consumindo
pedidos
desesperados
e gratidões
absurdas.
Sucendem-se
aos olhares
embargados
o indagar
de respostas
em Cristos
crucificados
outros ajoelham-se
compungidos
debruçados
sobre si
próprios.
Lisboa, 2 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

A lua saíu para a noite

a lua saíu para a noite
e surpreendeu a coruja
a roubar azeite no lagar
isso foi uma clarividência
Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Écloga do vale do Lena


Eu tinha cinco anos
eram oito da manhã
mais coisa 
menos coisa
do alto da encosta
ao cimo do Outono
observava o vale
estremunhado
havia um castelo
à esquerda
e Rodrigues Lobo
com seus salgueiros
e rouxinóis
um incansável rio
a serpentear
estendiam-se
a perder de vista
na outra margem
a fazer a grande curva
de nuvens rodeado
um pequeno monte
nessa altura
tive um amigo
o único milhafre
da minha infância
esperava que chegasse
para levantar voo
do alto da faia
depois sobrevoava
de asas abertas
o meu mundo
que era do tamanho
dos sonhos.
Lisboa, 3 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido, retirada do Blog "O Prazer da BTT" perto da nascente do Rio Lena
que infelizmente como eu, corria muito mais, na minha infância!

Voltar ao amor sobre as dunas...

voltar ao amor sobre as dunas 
devorar das camarinhas
pérolas brancas testemunhas

Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira


O cheiro limpo da resina...

Eo cheiro limpo da resina
no pinhal e a memória única
do sabor das púticas*
Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira


*Tubérculos de magnifíco sabor que apareciam de forma pouco abundante nos pinhais da zona oeste, mais conhecidos por pútegas e búxigas;

Os arbustos do crepúsculo...

os arbustos do crepúsculo
estremecem de permeio refulge
a cauda de fogo da raposa

Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira



DECADÊNCIA DAS PALAVRAS

“Nem com seu lápis nem com seu bastão nem
Nem luzes luzes quero dizer
Nunca coisa alguma
Mais nada
Nunca mais”.
Samuel Beckett


Emboscado
no desencanto
e na culpa
do desencontro
espero-lhe
as palavras.
Espero as palavras
as certas
as setas
do sacrifício
as da dor
pacientes
com clarividência
a palavra chave
que nos salva.
As palavras
na sua inteira exactidão
impertinente
bichos desconfiados
furtivos
sôfregas de ternura
num amedrontamento
ancestral.
As palavras
mo timbre
daquela voz
variações
de breves reflexos
avistamentos
despojadas
amparadas.
As palavras
destroços
na corrente
de um caderno de apontamentos
de cor
branco sujo
que escorreram leitosas
de uma qualquer lua
lacrimejante.
Palavras
a que retiram a substância
de permeio
a consistência
dos homens
que dão o dito
por não dito
e dão significado
ao tempo.
Palavras
bofetadas sem mão
de luva branca
ganindo
aos astros que do alto
nos cercam e nos espiam
neste imenso deserto
campo de concentração.
Palavras
cobertor
na noite que arrefece
o nosso sangue frio
e o nosso sangue quente.
faltam-nos
as palavras
o discurso
o directo
ko.
Aos poucos também
nós e a lua e as palavras
desistimos
somos ocupados
pelo vazio
exaustos
deitamos-nos
na mesma cama
que fizemos
e naquela outra
que nos foram fazendo.
Palavras
que se aconchegam
na repugnante
complacência
dos que afirmavam
a pés juntos
que estavam connosco
juras de fidelidade
e nesse concubinato
concupiscente
somos em silêncio
cúmplices
da voraz ditadura
da imagem e do ruído.
Assistimos
calados
ao declínio
do valor da palavra
das inflexões e das pausas
da sugestão
do que fica por dizer
das conversas
que são como as cerejas
das histórias
onde nascem histórias
conformados
ao peço palavra
e ao tenho dito.
Olho porém
para as folhas
e para as aves
que se agitam
no cume das faias
como se fossem
mãos e gritos
que sobem a pulso
as árvores da vida.
Faltam-me
as palavras
para descrever
aquelas da coragem
e da esperança
que sobem
aqueles troncos
prateados
então calo-me
e curvo-me
por esta ordem
está tudo dito.
Lisboa. 30 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Outra história trágico maritíma


Na sua busca desesperada
por uma qualquer Atlântida
encontraram-na
no Mar Mediterrâneo
improváveis marinheiros
sem cantos de sereia
que de ventos
conheciam o siroco
os do corredor de Wakhan
e do Cabo das Agulhas
fustigando
os panos das tendas
fizeram-de ao mar
e de ondas conheciam
as dunas de areia
do sal as lágrimas do medo
e astrolábios de fome
algures a umas centenas
de metros de profundidade
no rumo para Lampedusa
podemos reencontrar
a cidade dos anjos
da ingenuidade
uma multidão
de corpos dos náufragos
sírios afegãos somalis
habitam outros abismos
esta Atlântida necrópole
de um presente
redescoberto
nos abraços de afogados
cadáveres âncoras
que nos prendem
a uma nau sem rumo
à obscura
superficialidade
da cidade sonhada
para nós mesmo.
Lisboa, 27 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Foto de autor desconhecido

O pano da sua tenda...

O pano da sua tenda
côa o luar
e a primeira luz da madrugada
tão fino é o pano
e são suaves as arestas
que convocam a liberdade
dos que fogem
desesperamente.

Lisboa, 26 de Setembro de 2015
Carlos Vieira



Os seus olhos de fera encurralada...

os seus olhos de fera encurralada
de atónito refugiado
marejados de rubricas e carimbos
e de arame farpado
Lisboa, 26 de Setembro de 2015
Carlos Vieira






Foto de Muhammed Muheisen