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domingo, 21 de agosto de 2016

Contumaz


Vivia nesse estado permanente de contumácia
de amar desmesuradamente
faltando a todas as citações e julgamentos.
Lisboa, 1 de maio de 2016
Carlos Vieira

A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade

A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade
A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo 
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada.
Fernando Echevarría, in Sobre os Mortos

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Poema para um caracol


 
espiral de sol
que nos aquece por dentro
e desce até ao sinuoso silêncio
a esse mais tímido exercício da vida
de onde irradia
um rasto de mel
proclamas uma fantasia de saliva
e celebras um reino
sobre um caminho de musgo
e o suave persuadir das pétalas
tu que tens a sabedoria vegetal
e o fogo translúcido das amoras
conheces a subtileza dos pirilampos
no meio das trevas
desde o princípio dos tempos
e estás inebriado
de um perfume de feno e de madrugadas
o teu pensamento é feito de um fulgor
de laranjas
e do restolhar dos pássaros
nos arbustos
ardes no absoluto das fragâncias
foges ao ardil da palavra
vais pelo Verão
pelo leito dos rios
e escutas ainda o alarido das correntes
à margem das confidências
e depois de cultivares
a paciência dos répteis
que devastam as colheitas
e todo o conhecimento
foi na aparente ingratidão dos peixes
e no rigor das estações
que aprendeste a construir
a solidão de todos os muros
e o avesso de todas as portas
e vais tu pelo indelével
itinerário
na tua reincidência de flores
fazes deflagrar
em qualquer lugar
a laboriosa e exacta dimensão
do teu mundo interior
de caracol
quase esmagado
meu vizinho e meu irmão
mesmo que o déspota prevaleça
ou o vendaval sopre
e arrase a tua casa frágil
se ela ficar de súbito vazia
que os seus escombros
e fragmentos de memórias
sejam os versos deste poema
e tudo aquilo que perdemos
signifique o absurdo
de um dilema
uma réstia de esperança
mesmo que efémero
o salvo conduto
da liberdade

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2012
Carlos Vieira

Pintura de Shigolev Oleg