na ressaca de dois filmes franceses não acabados de ver, desembocaram no delta desta minha primeira noite de verão, o meu avô José e a minha avó Maria Rosa, como dois náufragos que realmente foram, embora quase podia jurar que nunca viram o mar
a casa dos meus avós era num lugar no fim da aldeia, junto à Fonte das Lágrimas, todos os meus familiares viviam na penumbra e movimentavam-se em câmara lenta, havia um pátio habitado por um cão que não parava de ladrar e dois perus que peroravam ao desafio
o meu avô filho de mestre escola, padecia de um alcoolismo patológico, o que o levava a frequentar tabernas esconsas e adegas para o qual não era convidado, atendendo à sua sofreguidão e destempero. foi no entanto boa gente e lia jornais furiosamente toda a tarde, debaixo de um alpendre, notícias requentadas quase sempre de meses, era a única ligação sóbria ao mundo
a minha avó Maria Rosa era muito pequena sem ser anã, sofria de bicos de papagaio e não se dava por ela, debitava uma ternura silenciosa, perfumes de frutas, geleias e alfazema, tinha uns olhinhos pequeninos e poucas palavras, lembro-me que aquilo que havia de mais colorido naquela casa era uns comprimidos que experimentei, felizmente sem consequências de maior, depois levava-me pela mão para o seu quintal, que no meu entendimento de criança era aquilo que era mais parecido com o paraíso
ali deleitava-me na luxúria das cerejas, das nozes, das nêsperas e outras frutas, texturas ou árvores que me esquecia, exigiram de mim a ousadia e a ginástica e os argumentos que mais nenhum outro local da Terra, tão eloquentemente me pôde confrontar, depois chegou a história da serpente, ainda em que momento oportuno e quebrou-se o encantamento
Lisboa, 13 de Junho de 2017
Carlos Vieira
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