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domingo, 28 de agosto de 2016

Marguerite Duras et l'amour du vide








Anton Tchekov, "A Mulher do boticário"


O lugarejo de B.., formado por duas ou três ruazinhas tortas, dorme seu sono pesado. No ar espesso o silêncio é total. Ouve-se apenas, ao longe, fora dos limites da cidade, o latido ardido e líquido de um cão que aos poucos enrouquece. É quase o amanhecer.
Há muito tempo que tudo está dormindo. A única que não dorme é a jovem mulher do boticário Tchornomordik, proprietário da farmácia de B… Já tentou deitar-se três vezes, mas, não sabe por quê, o sono teima em não querer chegar. Sentada, a janela aberta, veste apenas uma camisola e olha para a rua. Sente calor, tédio, desgosto. Tanto desgosto que lhe dá até vontade de chorar; de novo, não sabe por quê. Sente um nó no peito que de repente lhe chega a garganta… Poucos passos atrás dela, colado à parede, dorme Tchornomordik e ronca baixinho. Uma pulga esfomeada suga-o a raiz do nariz, mas ele não percebe e até sorri, pois está sonhando que todos na cidade estão com tosse e compram dele, interminavelmente, as gotas do rei da Dinamarca. Nenhuma picada poderia acordá-lo agora, nem um canhão, nem uma carícia.

Georges Simenon, excerto do livro "Carta Para Minha Mãe"


«Quantos [homens] houve desde a pré-história? Ninguém sabe. O que se pode supor é que, tal como acontece agora, se bateram uns contra os outros, se mataram uns aos outros, que devem ter lutado contra os vizinhos, os grandes cataclismos cósmicos e as epidemias.
No entanto, todos, mais ou menos, pensaram o seguinte:
- O que é o homem? Quem é o meu vizinho?
Hoje em dia, a etnografia anda à procura dos vestígios desses homens de antigamente, que são, afinal, os nossos avós; nos laboratórios do mundo inteiro a biologia tenta conhecer o homem actual.
No entanto, não conhecemos as pessoas que vivem na porta ao lado, as pessoas com quem nos cruzamos diariamente na rua, com quem trabalhamos lado a lado.»

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Mutações


Num corredor vi uma seta que indicava uma direcção e pensei que aquele símbolo inofensivo fora outrora uma coisa de ferro, um projéctil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e enevoou o Sol nas Termópilas e deu a Harald Sigurdarson, para sempre, seis pés de terra inglesa.
Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um cavaleiro magiar; uma corda com várias voltas rodeava o peito da sua montada. Soube que a corda, que antes andara pelo ar e submetera os touros na pastagem, não era mais que uma gala insolente do arreio dos domingos.
No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e afastados e rodeava-os um círculo. Essa cruz apertada e limitava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a «máquina vil» insultada por Luciano de Samosata.
Cruz, corda e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que maravilham, quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen

Sobre a lucidez

Tendo em vista com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam , a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez"

Livro do Desassossego - Fernando Pessoa

sábado, 16 de junho de 2012

Extrato de texto de Philippe Sollers

"Num só Inverno já foram recenceadas mais de cem mil gaivotas pequenas n Île-de-France. Vindas do Norte (Países Baixos, Alemanha, Báltico, Bélgica), riem no céu de Paris. damos com elas nos lagos dos bosques de Vincennes ou de Boulogne, ou ainda nos Buttes-Chaumont. Dormem juntas, às centenas, na superfície aquática. A comida espera-as nos sacos plásticos que forram as latas de lixo das ruas ou do...s pátios dos prédios. Os seus territórios predilectos são os terraços e os espaços saibrados, mas também os aeroportos onde se podem divertir a morrer nos reactores dos aviões, armadas em autênticas terroristas. Aqui na ilha, muitas vezes voam em círculos e aos pares em torno de nós, planam, parecem defender o horizonte, por vezes tentam incursões na erva quando faz muito calor ou o temporal ameaça. Por um instante contemplo a covinha que tens a cima da bochecha esquerda, mão encostada à têmpora direita, a orelha despegada comestível, os dedos, o nariz fino. A questão que reaparece é a da "própria pureza". Isso, não esperava eu. Tu escutas, falas, voltas a escutar com ar sério, sorris, és uma paisagem mutante, passas, a mão pelo cabelo curto, o indicador volta-te um pouco à orelha, ao lóbulo da orelha, o polegar aflora-te a face, tornas-te frágil, mas não, eis-te de novo com força e fulgor. Levantas-te, vais procurar cerejas, que palavra magnífica, cereja, sem falar daquelas que esta induz, morango, framboesa, amora, ameixa, azeitona, mirtilo. Outras tantas sílabas para comer. Sentas-te de novo, atiras com os caroços para as ervas, suspiras, atas outra vez o lenço negro ao pescoço, vejo-te melhor uma das veias, bocejas, um gestozinho da mão direita em frente dos lábios. Dizes que tens sono, que vais dormir, deixas atrás de ti a tarde à contemplação vazia."

A ESTRELA DOS AMANTES

PHILIPPE SOLLERS

sábado, 3 de março de 2012

O mistério da estrada de Sintra, Eça de Queirós

Eça que é Eça, antes dos exames de DNA, da utópsia pesicológica, dos especialistas em crimes passionais e do IC19...

"Contei-lhe ontem como inesperadamente havia encontrado à cabeceira da cama um cabelo louro. Prolongou-se a minha dolorosa surpresa. Aquele cabelo luminoso, languidamente enrolado, quase casto, era o indício de um assassinato, de uma cumplicidade pelo menos. Esqueci-me em longas conjecturas, olhando, imóvel, aquele cabelo perdido.
A pessoa a quem ele pertencia era loura, clara, decerto, pequena, mignonne, porque o fio de cabelo era delgadissímo, extraordinariamente puro, e a sua raiz branca parecia prender-se aos tegumentos cranianos, por uma ligação ténue, delicadamente organizada.
O carácter dessa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante, porque o cabelo não tinha ao contacto aquela aspereza cortante que oferecem os cabelos pertencentes a pessoas de temperamento violento, altivo e egoísta.
Devia ter gostos simples, elegantemente modestos a dona de tal cabelo, já pelo imperceptível perfume dele, já porque não tinha vestígios de ter sido frisado, ou caprichosamente enrolado, domado em penteados fantasiosos.
Terá talvez sido educada em Inglaterra ou na Alemanha, porque o cabelo denotava na sua extremidade ter sido espontado, hábito das mulheres do Norte, completamente estranho às meridionais, que abandonam os seus cabelos à abundante espessura natural.
Isto eram apenas conjecturas, deduções da fantasia, que nem contituem uma verdade científica, nem uma prova judicial.
Esta mulher, que eu reconstruia assim pelo exame de um cabelo, e que aparecia doce, simples, distinta, finalmente educada, como poderia ter sido o protagonista cheio de astúcia daquela oculta tragédia? Mas conhecemos nós poventura, a secreta lógica das paixões."
O mistério da estrada de Sintra, Eça de Queirós