sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Espelho IX


Antes de sair
olhei-me ao espelho
e não me reconheci
quem é este estranho?
só me lembro de mim
num tempo
de fugidios reflexos
em que tudo era um jogo
de espelhos e de luz
agora não sou ninguém
brinco à cabra-cega
na penumbra
das palavras
onde me espelho .
Lisboa, 31 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Espelho VIII



Ataste o lenço
de seda estampado,
deste um último retoque.
Antes foi o gume afiado
do teu olhar de amêndoa,
o silvo dos teus lábios
interrompido
por um guizo de suspiros,
no rumo dos teus dentes
à flor da pele.
As escaramuças
e o vagar
de amar
é algo que apenas
a nós interessa.
Depois o teu vulto
definitivamente
desapareceu na névoa
na memória
do espelho de retrovisor
embaciado.

Lisboa, 31 de Outubro de 2014


Carlos Vieira

Espelho VII



A barbatana de um peixe
é uma lâmina de escamas
que acende no espelho de água

na usura da pele
uma breve agitação
uma revolução tranquila.

Lisboa, 31 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Espelho VI



Havia um espelho na casa de banho
de estanho corroído
onde te demoravas
a maquilhar
atentando apagar
a passagem do tempo.

Lisboa, 30 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Espelho V



Lembro-me de ti
à janela
tentavas cegar-me
com um pequeno espelho
e só de te ver
não via mais nada.
Isso foi antes do braille
do teu corpo
do murmúrio da tua pele.

Lisboa, 30 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Espelho IV



Aquele espelho
ao fundo do corredor da morte
não sei se para ver
se os condenados
ainda respiram
se para darem
um toque final
ao penteado.

Lisboa, 30 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Espelho III



Passei para o outro lado
do espelho
e agora não sei
o caminho de volta
agora que te encontrei
não sei se sou eu
se é o espelho
feito em estilhaços
espelhado
pelos quatro cantos do mundo
de ti.

Lisboa, 30 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Espelho II

Espelho II

Espelho meu,
espelho meu,
porque mentes?
devolve-me
a luz e a voz
tudo aquilo
que fui
o que sou eu.

Lisboa, 30 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Espelho I



Quando me olho ao espelho
não vejo o argueiro
no meu olho
suspeito
que um parasita
me invadiu
o coração.

Lisboa, 31 de Outubro de 2014

Carlos Vieira

Pálpebras...

Pálpebras
asas
e pétalas
neste outono
de onde se desprende
o voo
de um olhar
que se despede
num sono de morte.
Lisboa, 29 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Poema por um olhar de equídeo


Um cavalo
atravessou o auto-estrada
à minha frente
chuvia torrencialmente.
Não consegui
evitar que o seu olhar
me acompanhasse
uma boa dezena de quilómetros
na dança do limpa-pára brisas.
Encostei numa estação de serviço
e só aí o endiabrado alazão
me pareceu ter regressado à campina.
Não foi a primeira vez
que me senti tão incomodado
por um tão humano
olhar de animal.
Desta vez
telefonei à Brisa.
"-Está um cavalo encurralado entre rails
ao quilómetro 65!"
Lisboa, 28 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


Ritual


Eu falo-te
não me ouves
nem reparas
que estou
a teu lado
que só tenho
olhos para ti
que tu és o ar
que respiro
afastas-te
vou atrás de ti
sigo-te
não posso
perder-te
páras mais
à frente
julguei
que talvez
esperasses
por mim
agachas-te
fico preso
na magia
da imagem
do teu pé
descalço
do teu busto
dobrado
das tuas
mãos hábeis
a apertar
o atacador
agora
que estás
de joelhos
desse ângulo
podes ver-me
e dizer-te
do meu amor
sem te parecer
um absurdo
excesso
enquanto isso
dás o nó.
Lisboa, 28 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Pintura de Anna Berozvskaya

O caminho das pedras


Ouvi um estrondo
uma chuva
de pequenas pedras
uma nuvem de pó
na pedreira
que extirpa
da montanha
o calcário
e há um trabalhador
que surge
junto a um contentor
apenas um rosto
ensanguentado
de um Deus
sem capacete
que desce o calvário
que sobreviveu
à tragédia
ao fadário
das estatísticas
dos acidentes
de trabalho.
Serra dos Candeeiros, Setembro de 2014
Carlos Vieira


Uma camisa de forças


Procurava
a evasão
que foram
teus lábios
na noite escura
cansado
do beijo
da insónia
amarrado
aos abraços
esterilizados
dos lençóis
de linho
na almofada
o meu suor
cercado
pela ausência
feroz
do teu perfume.
Lisboa, 28 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

" Os retratos" de Martin Schoeller

terça-feira, 28 de outubro de 2014

O principal e o acessório



Vértebras,
poemas em osso
acessórios
que nos mantém
a coluna direita
e que nos fazem
“dobrar a espinha”.

Palavras
ossos duros de roer,
breves acessórios
da escrita,
sobre a qual
nos cingimos
buscando
antes e depois
da carne
um sentido maior
para o homo sapiens.

“- Meu amigo
venham daí
esses ossos!”

Lisboa, 28 de Outubro de 2014
Carlos Vieira



domingo, 26 de outubro de 2014

Sem palavras



Há dias e dias
em que não há palavras
ao nomeá-las
elas não nos respondem
nem escutamos o eco
dos seus passos
que se afastam do vazio
em que habitamos.

Os pensamentos
são pardais de telhado
ariscos
desconfiados
nenhum pensamento
te vêm comer à mão.

Desvanece-se
esboroa-se
aquilo que designamos
por realidade
que muito dolorosamente
tínhamos construído.

Os objetos
tornam-se indefinidos
estranhos
fogem-nos das mãos
desajeitadas.

As pessoas e os animais
evitam-nos
mudam de passeio
com um sorriso
nos lábios.

O nada
é uma ave
que nidifica
fora de época
na nossa cabeça.

Parece-me entender
que existe aqui
uma certa dificuldade
de confronto
connosco mesmo.

Um cuidado atávico
na contaminação
a tendência do caminho
seguro e único
já trilhado
e com provas dadas
perante esta pandemia
de solidão.

Lisboa, 26 de Outubro de 2014
Carlos Vieira



Rene Magritte

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Poesia sem mãos a medir


Gosto 
do adejar das mãos
a desbravar
aromas e sabores
no corpo etéreo
das árvores 
na intransigência
dos espinhos
e das flores.

Gosto 
do que insinuam
e escondem
na mímica de Jean Cocteau
as mãos nuas
no seu mistério de prestigitador
ora abertas
ora fechadas
de em carne e osso
encenar
a vida.

Gosto 
da desenvoltura
dos pequenos trabalhos manuais
para os quais
nunca tive jeito 
dos pequenos objectos
nas mãos à aventura
que nos acariciam
e despem
mãos de viajar
que nos tocam  
e quando parece 
nos vão beijar
nos deixam.

Gosto daquela
forma atarantada
das mãos
ficarem sem jeito
e não saber onde metê-las
entarameladas
de meter
os pés pelas mãos.

Gosto das suas mãos delicadas
a percorrem o país da minha pele
de lés a lés
a tactearem em cada poro
um admirável mundo.

Gosto daquelas outras mãos
que partem e que apertam
e das outras sujas
pesadas, ásperas, enormes 
de pulso
sem relógio
tão precisas
sempre por perto
sempre ocupadas
do meu pai.

Gosto das mãos abençoadas
deitadas no colo 
de uma serena tristeza
da mãe paciente
mãos limpas
de unhas maltratadas
dos produtos de limpeza
que tem tudo para dar
e não esperam nada.

Gosto de mãos 
de criança inocente
penduradas
no meu dedo indicador.

Daquelas 
que empunham
utensílios
brinquedos
e fazem de escadas
e de baloiços
num prolongamento
num balanço
até ao coração.

De mão cheias de cimento
e generosidade
e ilusão.

Gosto 
daquelas mãos enrugadas
da minha avó
pousadas no silêncio
esquecidas
para sempre
afagando
o tempo subtil da ternura.

Gosto das mãos
que teceram o naperon
onde a moldura
de um menino de calções
sorri a preto e branco
e que esperam o namorado
que há décadas partiu
para uma guerra
que não era 
de alecrim e manjerona.

Mãos exaustas 
a cortarem
a sobriedade 
de uma fatia de pão alvo
e a espalharem 
só de um lado
a manteiga.

Mãos solícitas
a limparem 
as feridas das lágrimas
amparando-me
no desequilíbrio
de tantos primeiros passos
com saudades do tempo
em que empurravam 
as primeiras letras
animais domésticos
a que chamaram arabescos.

Não me lembro do perfume
da minha mãe daqueles tempos
lembro-me dela curvada
sobre mim
e de irem rente ao chão
suas mãos suadas de jardim
sossegando
os bichos e as flores.

Lembro-me
daquelas outras mãos
fincando nas minhas costas
as unhas desesperadas
dos dedos nos lábios
que não sabiam guardar segredos
travando as palavras
modelando o desejo.

Mãos de pequenas transgressões
e de impressões digitais
por revelar.

Mãos hábeis
sem luvas
nos laboratórios
manipulando substâncias perigosas
e experiências ousadas.

Mãos postas
das capelas
em busca de uma luz
que a terra lhes ne(s)ga.

Mãos de orador
a sublinhar a veemência
e a limpar um pingo de suor.

Mãos  de empunhar espingardas
crispadas de medo
e dedo no gatilho.

Mãos generosas
que respondem demasiado tarde
ou demasiado cedo.

Mãos de despedida
acenando, acenando
e que regressam inconsoláveis
à pátria
aos bolsos vazios da partida.

Mãos estendidas
de esmola
e de ponta e mola.

Mãos
animais que ruminam
a fome  e a penumbra
mãos sem mãos.

Mãos de pintor
na mistura dos pigmentos
tão discretas e tão de dar-se
para encontrar a cor
pela tela
a espalharem uniformemente
a dor.

Mãos sem pé
no desesperado
abraço
dos afogados.

Mãos de luva de pelica
mãos de luvas medicinais
de evitarem contaminar-se
com a irrespirável realidade
de todos os dias.

Mãos de pedra
lívidas
de moribundo
a caminho da eternidade.

Mãos sempre fechadas sobre si mesmo
e de rapina
alcandoradas nas escarpas
embriagadas no olhar
da solidão.

Mãos de fada
iluminadas e cegas
por esplendorosas madrugadas.

Mãos
içando velas de navio
mantendo rumo
decifrando o vazio.

Mãos de pescador
de cana imóvel na falésia
pendurado
numa tarde
de Verão fora de tempo
em que nada
nenhum peixe acontece.

Mãos
que são penas
com a subtileza  dos poemas
violentamente
presas à vida.

Lisboa,  Outubro de 2014

Carlos Vieira

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Vigilância I



Uma luz 
acendeu-se
no 2.° Dt.º
do n.º 48
subiu o estore
delicadamente
alguém
abriu a janela 
acendeu
um cigarro
fumou-o
pausadamente
ageitou
o cabelo
que esvoaçava
e abotou a blusa
insinuante
percebia-se
uma mulher
de meia idade
um sorriso 
desprendeu-se
dos lábios
o seu olhar 
estremeceu
em direção
a um vulto
que denunciou
agachado 
nuns arbustos
ali em frente
uma respiração 
ofegante
não foi perceptível
se era lágrima
ou pingo de chuva
que resvalava
pela sua face
se aquela
auréola 
provinha 
de alegria interior
ou de resquícos de lua
que nuvem
escondera.
Em face daquele
absurdo
confirma-se
a suspeita
hoje já
não se ama
mais assim
por sinais
de peças de roupa
no estendal
e o homem
que é homem
não finge
de flor no jardim.

Lisboa, 20 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

sábado, 18 de outubro de 2014

Chiaroscuro



No mobiliário branco de design contemporâneo à minha frente, sentaram-se duas mulheres de óculos escuros, pediram dois galões, um claro e o outro escuro, as suas roupas eram desportivas e escuras.
Somente os generosos decotes das suas camisolas de tecido leve, de onde ressaltavam seus peitos ebúrneos, contrastavam com a sua atitude recatada e cúmplice, iluminava-as a sua atitude despretensiosa, depois apercebi-me da clarividência dos seus comentários, aconteceu seu riso cristalino.
Não olharam uma vez para mim que era o único cliente do café, omnipresente na ilha da minha mesa branca com os poemas espalhados como barcos numa planície gelada.
A verdade é que para algumas pessoas, nós não somos mais que uma noite escura como o breu, algo que existe na penumbra, na sua sombra ou então somos transparentes.
Tenho ainda uma outra explicação, existem pessoas que tem um raro faro para evitar os solitários e uma aversão incontrolável ao mistério.

Lisboa, 17 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


Foto de Lloyd K. Barnes

Fui a Matosinhos...



Fui a Matosinhos, em dia de aviso laranja, o mar erguia castelos de espuma, ninguém conseguia
descortinar nem novos, nem velhos  horizontes, as rajadas de vento varriam das ruas, os papéis e os mais corajosos transeuntes.
Nem me reconhecia de cabelo desgrenhado, reflectido na montra, um perfil actualizado de Ernest de gravata e muito menos génio.
Só voltei a mim, a alguma serenidade na admirável textura do arroz de polvo e dos taninos alentejanos. 
Diria pois que não só se morre pela boca mas também se renasce naquele restaurante de que não me lembro o nome em Matosinhos.

Matosinhos, 16 de Outubro de 2014


Carlos Vieira

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Quatro crónicas para uma morte anunciada



I
Aqui estou
numa área de serviço
de regresso
à solidão profissional
de caixeiro viajante
nos subúrbios da grande cidade
a gozar
um merecido descanso
pedi o pequeno almoço
habito o lusco-fusco da manhã
ergo um sumo de laranja
em cima da mesa
a fumegar  
uma merenda e um café
devoro esta bela poesia matinal
em forma de menu
de cheiros e sabores
e cores
neste lugar impessoal
nesta vertigem de néones.

II
Lá fora os condutores
umas vezes dançam
outras tropeçam
engalfinhados nas mangueiras
das bombas de gasolina
alguns entram em êxtase
aspiram os fluidos do combustível
outros olham boquiabertos
o fluxo dos números
ou a relevância dos preços
sempre com o dedo no gatilho
do diesel sem chumbo.

III
Ali ao lado
na via rápida
circula gente mais ou menos apressada
balanceados
vão à sua vida
de mãos dadas com uma morte lenta
escravos de manivelas e botões
não deixam saudades
fecharam a porta
a qualquer entendimento
numa viagem sem retorno
mas ergue-se um pequeno bafo quente
à sua passagem
uma alusão ao inferno ou ao Diabo
sem enxofre.
IV

Alguns clientes
visitam os escaparates
outros vão diretamente para a fila
todos desinteressados
indiferentes ao outro
que por acaso está ali mesmo ao seu lado
aves de passagem
pela estação de serviço
com colorido de festa
e algumas travagens
e escape livre
sinais de um novo mundo
dos novos tempos
reabastecem
reabastecem
dão movimento
à precariedade da vida.

Lisboa, 17 de Outubro de 2014
Carlos Vieira



quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Esta claustrofobia...

esta claustrofobia
geométrica do betão
sem telhados nem chaminés
nem gatos
esta falta de altura 
e de chão
de um primeiro andar
Lisboa, 15 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

a gaivota...

a gaivota
no cimo do semáforo
alivia o imperativo das cores
Lisboa, 15 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Embebi...

Embebi 
o pincel na lua
só depois 
consegui
teu corpo nu
contra o verde escuro
dos pinhais
onde descortinei
indícios
do voo das rolas.

Lisboa, 14 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

sonhos de uma noite de inverno...

sonhos
de uma noite de inverno
e pão quente
à boca do forno

Lisboa, 14 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Clausura



e nua
e sem pecado
um ser frugal
perante o absurdo
e a intempérie
sem uma palavra
nem o mais pequeno gesto
apenas
um silêncio vegetal
à flor da pele
pálida
e aquela falta de ar
e de história
elementos comuns
que a acompanharam
em toda a sua vida
agora
está nas suas mãos
no seu instinto animal
e naquele seu olhar cego
de sofreguidão
e de pobreza
tudo o que ainda lhe resta
já que deixou
no prego
o coração ignaro.

Lisboa, 14 de Outubro de 2014
Carlos Vieira



"Seclusion" de Charles Wilmott

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

De fajã em fajã I



A correr 
fomos de uma fajã a outra
aos saltos pelo "calhau"
entre salpicos de espuma
um pé nas grandes
bolas de pedra
e o outro na Terra
nas narinas a maresia
em breve chegámos
ao céu
eu e o João Paulo.

Lisboa, 12 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


Poça da Feijão do Ouvidor

Interlúdio com uma sereia


Sinto 

o desafio da presença 

do seu olhar

cristalino o fio

do seu canto em surdina

a incendiar

os lugares mais inacessíveis

da carne.



Teu olhar redondo 

concha esquecida

como um lago 

onde sonhava refrescar

os meus pés 

de onde se erguem as colunas

de alabastro

das tuas pernas

para adornarem

uma tarde de um Verão.




Mergulho

espero por ti

volto à superfície

sereia

que desapareces

do meu mundo

num pestanejar.



E agora

batem em mim

as vagas da ausência

e fica-me a corroer

o peito 

o teu coração de sal 

procuro-te

pelo periscópio 

e somente encontro

um crepúsculo de frio.



Desvaneces-te

no submarino silêncio 

volto à condição

de náufrago

que foi morrer na praia

de uma amor

que existiu apenas

naquelas subtilezas do olhar 

que se cruza agora

com o teu lugar do vazio

preenchido por o eco 

de um canto

que no acaso coincidiu

com a tua sede.



Lisboa, 13 de Outubro de 2014


Carlos Vieira

domingo, 12 de outubro de 2014

Jardim nocturno IV


Abre-se
uma porta
de tasca
na meia-noite
como se fosse
uma navalha
e o aroma
a perfume barato
cruzam a rua
e o pensamento
muito bem conservado
em álcool
e o fado vadio
é maltratado
numa voz rouca
de Tom Waits
sem cor
que treme
que se esforça
ninguém sabe
se de ressaca
se de frio
era no entanto
uma porta aberta
uma mão estendida
- Quer "flo". Quer "flo"!
Se eu quisesse!
Lisboa, 11 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

"Red rose in the dark night"

Jardim nocturno III


Em noites
de luar de sargeta
sobre o alcatrão
o movimento
das bielas
e êmbolas
no seu movimento
sub-reptício
germinam
nas manchas
de óleo derramado
um arco-irís
de néons e semáforos
e palavrões.
De súbito,
a mais profunda
escuridão
o estrépito metálico
e o chiar do travão
um cheiro
a borracha e a férodo
o ruído bruxuleante
dos pirilampos
e do sangue
de encontro às paredes
do medo.
Cumpre-se agora
meticulosamente
o protocolo
nas Urgências
depois da vida
nada mais é urgente.
Lisboa, 11 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

www zastavki com lights of the city at night

Jardim nocturno II


Notívagos
de cigarros
pendentes
no canto dos lábios
dos Bogart's
decadentes
que divagam
pelos palcos
de outro mundo
e respondem
com sorriso
distante
ao desconforto
acústico
de alumínio
na triste
solidão
das "marquises"
perante
um amor
que não encontram
nem existe.
Lisboa, 11 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Valery Hugott
Foto tirada em 12 de setembro de 2014
Sorbonne, Paris,

Jardim nocturno I


O jardim nocturno
de redomas
de luz
onde insectos
voam
e para chamar
atenção
cometem
suicídio
nos estames
incandescentes
das lâmpadas.
Lisboa, 11 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


O candeeiro do Vasco

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Apenas uma folha de ouro...


Apenas 

uma folha de ouro
no negro asfalto
e o sono interrompido
por um resmungar 
de trovão
deram início 
àquele domingo
nesta pompa 
e circunstância
de um Outono
em que desces
do meio das nuvens
molhada e nua
como é teu timbre
fazes num gesto hábil
da folha caída
um diadema
no teu porte a anunciar 
a próxima ausência
o fim doloroso do Verão
com que faremos
a generosa vindima
de mais um poema.

Lisboa, 8 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


Uma chuva de beijos



Surpreendeu-me
a chuva miudinha
que desce pelo rosto
enevoado
da manhã de Outubro
e aos meus lábios
chega o rebelião
dos teus beijos
de água doce.

Lisboa, 8 de Outubro de 2014
Carlos Vieira




Pintura de autor desconhecido

Pouca gente fala...

Pouca gente fala 
das últimas chuvas
apenas das primeiras
precipito-me
para o intervalo
desse tempo
encharcado
ora das bátegas
ora dos pingos
do seu eterno
canto.

Lisboa, 8 de Outubro de 2014

Carlos Vieira

sempre que chove de novo...

sempre que chove de novo
chove de novo
chove
interruptamente
e não adianta escrever no molhado

Lisboa, 8 de Outubro de 2014

Carlos Vieira

sábado, 4 de outubro de 2014

Valor calórico


Andam as bicicletas
às voltas
pelas ciclovias 
da cidade
de ajustados trajes 
eléctricos de licra
os ciclistas
transpiram saúde
por todos os poros
sonham
morrer longe
daqui
a muitos anos
de felicidade.

Nos outros atalhos
e ruelas da urbe
muitos cidadãos
arrastam-se
pelo fim da tarde
sem pedalada
prestes a saltar-lhe
a corrente
de roupa coçada
em segunda mão
um pouco larga
na sua silhueta
escanzelada
ou a rebentar
pelas costuras
empanturrados
no MacDonalds
em " comida feliz" 
e coca cola.

Eu vou ficando
por aqui
esparramado
no consumo excessivo
de poesias
no fundo a vida 
sempre se resumiu
e se explicou
pelo peso das calorias.

Lisboa, 4 de Outubro de 2014

Carlos Vieira

Nada, nada, nada



Neste sábado de manhã
enquanto tomo o café

espero a Matilde
na piscina do Holmes Place
os meninos aprendem 
a nadar.

Treinam os estilos 
livre de correntes
e de bruços 
e de costas 
para o imenso mar
de escolhos
da vida.

Peixes de água doce
e aquecida
e de risco moderado
reaprendem a respirar.

Vou-me embora
cansado de tanta estafeta
neste oceano
a fazer de conta
e o tempo
está a mudar.

Mergulho
nado debaixo
de água
dou duas ou três braçadas
e estou dentro 
do liquído amniótico da solidão
vou até ao açude
da infância
deixo-me descer
até à fossa abissal
da poesia.

Carlos Vieira




sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Um último desejo



Teus olhos
prometem amêndoas
e assinalam o rasto infinito das estrelas.
Nas tuas mãos
respira-se a pureza do sal
o suor de um recreio de brincadeiras
e a clarividência das aves
que deflagram num bosque de sangue
o incêndio dos sentidos.
O teu torso tenso
é alvo acometido pelo sémen da luz
que desfalece
trespassado pela zarabatana
que inocula do desejo
apenas o veneno
e no amor
desencadeia essa morte feliz
em prolongado estertor.

Lisboa, 3 de Outubro de 2014

Carlos Vieira

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O golpe do teu riso...

O golpe do teu riso
ilumina o abraço 
da nossa fria 
nudez
até desarmar
a cinzenta monotonia
faço-te
cócegas
na planta perfeita 
dos teus pés
depois percorremos
o desencontro
cegos no púlpito
da luz
das palavras
e a inevitável solidão
a que nos conduz
qualquer caminho.


Lisboa, 2 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Hábil...

Hábil
a tua mão
de tesoura
liberta-me 
da discreta
inutilidade.

Lisboa, 2 de Outubro de 2014

Carlos Vieira

Sagaz...

sagaz
é a observação 
e ágil o movimento
do goraz
nas águas turvas

Lisboa, 2 de Outubro de 2014

Carlos Vieira