sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Quatro crónicas para uma morte anunciada



I
Aqui estou
numa área de serviço
de regresso
à solidão profissional
de caixeiro viajante
nos subúrbios da grande cidade
a gozar
um merecido descanso
pedi o pequeno almoço
habito o lusco-fusco da manhã
ergo um sumo de laranja
em cima da mesa
a fumegar  
uma merenda e um café
devoro esta bela poesia matinal
em forma de menu
de cheiros e sabores
e cores
neste lugar impessoal
nesta vertigem de néones.

II
Lá fora os condutores
umas vezes dançam
outras tropeçam
engalfinhados nas mangueiras
das bombas de gasolina
alguns entram em êxtase
aspiram os fluidos do combustível
outros olham boquiabertos
o fluxo dos números
ou a relevância dos preços
sempre com o dedo no gatilho
do diesel sem chumbo.

III
Ali ao lado
na via rápida
circula gente mais ou menos apressada
balanceados
vão à sua vida
de mãos dadas com uma morte lenta
escravos de manivelas e botões
não deixam saudades
fecharam a porta
a qualquer entendimento
numa viagem sem retorno
mas ergue-se um pequeno bafo quente
à sua passagem
uma alusão ao inferno ou ao Diabo
sem enxofre.
IV

Alguns clientes
visitam os escaparates
outros vão diretamente para a fila
todos desinteressados
indiferentes ao outro
que por acaso está ali mesmo ao seu lado
aves de passagem
pela estação de serviço
com colorido de festa
e algumas travagens
e escape livre
sinais de um novo mundo
dos novos tempos
reabastecem
reabastecem
dão movimento
à precariedade da vida.

Lisboa, 17 de Outubro de 2014
Carlos Vieira



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