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sábado, 2 de abril de 2016

Falsificação grosseira de um sonho de Van Gogh


Sonho
este sabor acre
e o tom ocre
no silêncio caiado
o serpenteado
das ruas
de casas térreas
e a tinta lascada
das portadas
os olhares crus
emboscadas
nas cortinas
de tule
gosto do zumbir
de insectos
e de o burro
a zurrar
a inquietar a tarde
nessa altura
será perfeito
se houver um corvo
ou o adeus de ouro
de um campo de trigo
entre o cobalto azul
e o véu da nuvem
sonharei
no meu pastel
de pigmentos
de girassol
o retoque final
em que de pé
tocarei o céu
alguém mais atrevido
poderá comentar
que me caiu
uma estrela
na paleta.
Lisboa, 2 de Abril de 2016
Carlos Vieira

quarta-feira, 25 de abril de 2012

revolução tranquila


                                                                                   “The house was quiet and the world was calm.

                                                                                     The reader became the book; and summer night”

                                                                                      Wallace Stevens







pétala

grito coado de seiva onde se tece

o pensamento da luz e do silêncio

e o primeiro canto livre dos espinhos

de coragem



sílaba

nos lábios de veludo onde renasce

a escola da ternura e o espanto da porta aberta

o azul é apenas o mar à volta das palavras

de viagem



perfume

das manhãs sobre o tronco da liberdade

que desperta e nos abraça desajeitada

e na sua timidez ainda seduz os pássaros

de passagem



lâmina

que te corta as cordas em que corre agora o sangue

dos teus pulsos e se reinventa nessa flor caída

no chão da história onde germinam tranças de sonho

de miragem



lágrima

página de água que se solta do cárcere da carne

véspera de dor que vence a vasta solidão do areal do tempo

e nas conchas das tuas mãos se oferece em sede de perdão

e de paisagem



cópula

onde cada átomo é o testemunho de puro prazer

em cada um se aprende que somos o vento e o céu e a vergonha

e cada gesto mais penetrante do amor que buscamos nos encontra

mais selvagem



pétala ou sílaba

de perfume e lágrima

lâmina da cópula

onde chora

onde cheira

onde sangra

a revolução tranquila



Lisboa, 25 de Abril de 2012

Carlos Vieira


                                         “ Farmer Sitting at the Fireside, Reading” de Van Gogh

sábado, 21 de abril de 2012

Xaile Negro


Subitamente

invadiu a página em branco

o vulto de mulher de xaile negro

e lenço no cabelo

como se caminhasse de costas

para uma manhã de neve

 saiu do nevoeiro

algures no princípio dos anos sessenta

apercebi-me disso

pela tímida amostra de cabelo

que se soltou

uma confidência da memória

e considerando a falta de ritmo dos passos

uma desprezível curvatura do tronco

diria que podia atravessar a meia idade

naquele andar de viúva  frágil

ou de abandono de emigrante

tinha aquele olhar de mulher

que já deixou Deus a falar sozinho

depois era uma mancha

que descia no atalho do papel

vergastada pelo vimieiros

aproximando-se perigosamente do rio

e foi então que lhe vi o rosto

de pálida serenidade

como se a vida já tivesse partido à muito

como se precisasse da corrente

para voltar para junto de si

um espectro que adejava

à beira de outro tempo

e na tinta que corre pela página

fixando apenas o xaile negro

e o lenço mais à frente

dispersos na nudez do corpo frágil

debatiam-se os ossos e a luz

apenas sombras fugazes

à flor da erva

subitamente esbate-se

 e fico de novo sozinho

suspenso sobre o buraco negro

a perscrutar a mão que se estende

a acenar a página em branco

a aguardar o rumor da escrita



Lisboa, 21 de Abril de 2012

Carlos Vieira



                                      “Woman with a mourning shawl” de  Vincent Van Gogh

domingo, 11 de março de 2012

I - Memória de Árvores


Desde há instantes que fiquei quieto

no meio deste Inverno desconhecido

porque se ergueu dentro de mim

aquele pessegueiro

e no seu interior uma arvéola

que me saltava para o olhar

de um ninho de espanto

nesse silêncio de calda branca

que me cobria o tronco e o tempo

antes do frenesim

de pêssegos flamejantes

da memória da água

e do peso da terra

sobre o veludo da pele

já era tarde

sobre o rosa pálido

a arrefecer o corpo

onde escorria o sumo

de morder a fruta

e o pôr-do-sol


Lisboa, 9 de Março de 2012

Carlos Vieira





“Souvenir de Mauve”

Vincent Van Gogh