sábado, 21 de abril de 2012

Xaile Negro


Subitamente

invadiu a página em branco

o vulto de mulher de xaile negro

e lenço no cabelo

como se caminhasse de costas

para uma manhã de neve

 saiu do nevoeiro

algures no princípio dos anos sessenta

apercebi-me disso

pela tímida amostra de cabelo

que se soltou

uma confidência da memória

e considerando a falta de ritmo dos passos

uma desprezível curvatura do tronco

diria que podia atravessar a meia idade

naquele andar de viúva  frágil

ou de abandono de emigrante

tinha aquele olhar de mulher

que já deixou Deus a falar sozinho

depois era uma mancha

que descia no atalho do papel

vergastada pelo vimieiros

aproximando-se perigosamente do rio

e foi então que lhe vi o rosto

de pálida serenidade

como se a vida já tivesse partido à muito

como se precisasse da corrente

para voltar para junto de si

um espectro que adejava

à beira de outro tempo

e na tinta que corre pela página

fixando apenas o xaile negro

e o lenço mais à frente

dispersos na nudez do corpo frágil

debatiam-se os ossos e a luz

apenas sombras fugazes

à flor da erva

subitamente esbate-se

 e fico de novo sozinho

suspenso sobre o buraco negro

a perscrutar a mão que se estende

a acenar a página em branco

a aguardar o rumor da escrita



Lisboa, 21 de Abril de 2012

Carlos Vieira



                                      “Woman with a mourning shawl” de  Vincent Van Gogh

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