A cidade
repousa anestesiada num berço de luz
em que ficamos simples, impávidos e nus
em que nos cingimos ao falsete da voz
que nega a cidade grávida dentro de nós.
A cidade
nos dias de sol, onde o nada acontece
embrulhada no cerco de voos de pardais
a casa ali está húmida naquilo que parece
em punhos que lhe rebentam pelos beirais.
A cidade
no rosto suado da mulher que sustive
num tempo de lhe moldar o suave declive
de lhe compor os cabelos em desalinho
de lhe escutar o canto e de servir o vinho.
A cidade
das palavras a secar nas pautas dos estendais
dos contrapontos de gatos em noites estivais
em aromas de alecrim e de hortelã sem razão
de morder a romã em 2m quadrados de solidão.
A cidade
das arquejantes velas em fatias de azul turquesa
a sobrevoar o olhar cruzado no império da tristeza
nos quarteirões os pombos desfiam antenas
cagam as estátuas enquanto arrulham poemas.
A cidade
de águas furtadas onde se enroscam tapetes persas
exótica exalas o oriente no caril impregnado das sedas
há pequenas encenações e adereços da glória e da fome
cínica assistes ao acessório e efémero sucesso sem nome.
A cidade
de janelas da vida entrecortada das pessoas
histórias de quadradinhos, de persianas e de névoas
no deve e haver dos bancos, filas de gente em vigília
poupam de baraço ao pescoço nos sonhos da família.
A cidade
das coisas excessivamente óbvias e das rotinas do decoro
inocentes na pedra da praça, a fruta e o peixe que te devora
as melancias e as suas desmedida esperança de sementes
que na suave fragrância das folhas de louro adormecera.
A cidade
da mulher das flores sempre com a mesma vida a medo
na mesma temperatura e delicada desmesura
na coroação do amor e no xaile negro amortalhada
com as rosas nas mãos e nos lábios o ocaso do segredo.
A cidade
onde se mastigam jornais de massa tenra ao pequeno-almoço
entre um galão e uma meia torrada, uma meia notícia
do correspondente de guerra que nunca terá sido fria
de alvoroço de ruas juncadas de crianças mornas quase vivas.
A cidade
de jornais onde escorre o sangue e a tinta e o sangue
onde se faz mínima a justiça pelas próprias linhas
só nas margens das páginas se vive nos limites
em fuga às escabrosas entrelinhas das manchetes.
Minha cidade
porque caminho ínvio te meteste
não é bom augúrio o teu céu ébrio de gaivotas
percorro os teus jardins e praças e esplanadas
explica-me porque recusaste o que prometeste
porque acolhes mansamente o gesto dos déspotas
que esconderam traiçoeiros o gume das espadas.
Minha cidade
luminosa, dos homens ávidos de palavras e de ideias
porque não voltas a desembainhar o lume das flores
e não és outra vez a primavera no adro das aldeias
numa explosão de abraços, de cores e de verdade.
Lisboa, 11 de Abril de 2012
Carlos Vieira
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