I
Vi nos seus olhos
de menino
pântanos a levedarem a fome
escolhos de silêncio
e gritam e “es-correm” pelo jornal
nós ficamos de cabeça à roda
ou mudamos de página
como quem muda de paisagem
II
E ali ficam eles crianças
presos a nós
como grilhões sem nome
manchados pelas notícias
ficam nossos dedos
de todas as áfricas
de todas as perplexidades
neste sucessivo abuso
da sua nudez
agora embrulhada
nas primeiras páginas
III
Na indisfarçável vergonha
fazendo-se fortes
no disfarce dos medos
na agressão
da sua mão estendida
vendem pensos rápidos
na sua vida
que segue interrompida
na luz vermelha
em carne viva
em todos os semáforos
IV
Nota-se contudo o desgaste
a desilusão
as vidas e as mortes prematuras
nas elipses das cristas papilares
sinto-as todos os dias
em sapatos que nascem da sua mão
e tropeço em sonhos de pé descalço
e custos de produção
V
Uma carícia de criança
é uma flor que não tem preço
neste tempo das crianças sem ruas
e de crianças de rua
isso que fazes não é brincar
nem é esse preço que se pague
pela ternura
VI
Cada vez
há mais filhos sem família
e há mais famílias sem filhos
cada vez mais abandonados
ou completamente sós
ainda crianças e já rodeados de filhos
crianças que nunca tiveram família
crianças que são pais e mães de família
crianças que aprendendo a amar a solidão
para não ficarem completamente sós
podem ficar para sempre sozinhas
VII
Crianças
que andam “à escola”
que não andam na escola
que sempre andaram na escola
que sempre vão andar na escola
que nunca foram crianças
que serão sempre crianças
sendo certo que as escolas
são para as crianças
que as escolas são
cada vez menos
para as crianças
VIII
Crianças
que sabem escrever
e que não sabem ler
que sabem ler
e não sabem escrever
e que sempre passaram de ano
e que fintam o insucesso
na escola da vida
sem saber ler nem escrever
Lisboa, 27 de Dezembro de 2011
Carlos Vieira
A inteligência da criança observa amando e não com indiferença – isso é o que faz ver o invisível.
(Maria Montessori, pedagoga italiana)
Fotografia de Kevin Carter