quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Poesia sem mãos a medir


Gosto 
do adejar das mãos
a desbravar
aromas e sabores
no corpo etéreo
das árvores 
na intransigência
dos espinhos
e das flores.

Gosto 
do que insinuam
e escondem
na mímica de Jean Cocteau
as mãos nuas
no seu mistério de prestigitador
ora abertas
ora fechadas
de em carne e osso
encenar
a vida.

Gosto 
da desenvoltura
dos pequenos trabalhos manuais
para os quais
nunca tive jeito 
dos pequenos objectos
nas mãos à aventura
que nos acariciam
e despem
mãos de viajar
que nos tocam  
e quando parece 
nos vão beijar
nos deixam.

Gosto daquela
forma atarantada
das mãos
ficarem sem jeito
e não saber onde metê-las
entarameladas
de meter
os pés pelas mãos.

Gosto das suas mãos delicadas
a percorrem o país da minha pele
de lés a lés
a tactearem em cada poro
um admirável mundo.

Gosto daquelas outras mãos
que partem e que apertam
e das outras sujas
pesadas, ásperas, enormes 
de pulso
sem relógio
tão precisas
sempre por perto
sempre ocupadas
do meu pai.

Gosto das mãos abençoadas
deitadas no colo 
de uma serena tristeza
da mãe paciente
mãos limpas
de unhas maltratadas
dos produtos de limpeza
que tem tudo para dar
e não esperam nada.

Gosto de mãos 
de criança inocente
penduradas
no meu dedo indicador.

Daquelas 
que empunham
utensílios
brinquedos
e fazem de escadas
e de baloiços
num prolongamento
num balanço
até ao coração.

De mão cheias de cimento
e generosidade
e ilusão.

Gosto 
daquelas mãos enrugadas
da minha avó
pousadas no silêncio
esquecidas
para sempre
afagando
o tempo subtil da ternura.

Gosto das mãos
que teceram o naperon
onde a moldura
de um menino de calções
sorri a preto e branco
e que esperam o namorado
que há décadas partiu
para uma guerra
que não era 
de alecrim e manjerona.

Mãos exaustas 
a cortarem
a sobriedade 
de uma fatia de pão alvo
e a espalharem 
só de um lado
a manteiga.

Mãos solícitas
a limparem 
as feridas das lágrimas
amparando-me
no desequilíbrio
de tantos primeiros passos
com saudades do tempo
em que empurravam 
as primeiras letras
animais domésticos
a que chamaram arabescos.

Não me lembro do perfume
da minha mãe daqueles tempos
lembro-me dela curvada
sobre mim
e de irem rente ao chão
suas mãos suadas de jardim
sossegando
os bichos e as flores.

Lembro-me
daquelas outras mãos
fincando nas minhas costas
as unhas desesperadas
dos dedos nos lábios
que não sabiam guardar segredos
travando as palavras
modelando o desejo.

Mãos de pequenas transgressões
e de impressões digitais
por revelar.

Mãos hábeis
sem luvas
nos laboratórios
manipulando substâncias perigosas
e experiências ousadas.

Mãos postas
das capelas
em busca de uma luz
que a terra lhes ne(s)ga.

Mãos de orador
a sublinhar a veemência
e a limpar um pingo de suor.

Mãos  de empunhar espingardas
crispadas de medo
e dedo no gatilho.

Mãos generosas
que respondem demasiado tarde
ou demasiado cedo.

Mãos de despedida
acenando, acenando
e que regressam inconsoláveis
à pátria
aos bolsos vazios da partida.

Mãos estendidas
de esmola
e de ponta e mola.

Mãos
animais que ruminam
a fome  e a penumbra
mãos sem mãos.

Mãos de pintor
na mistura dos pigmentos
tão discretas e tão de dar-se
para encontrar a cor
pela tela
a espalharem uniformemente
a dor.

Mãos sem pé
no desesperado
abraço
dos afogados.

Mãos de luva de pelica
mãos de luvas medicinais
de evitarem contaminar-se
com a irrespirável realidade
de todos os dias.

Mãos de pedra
lívidas
de moribundo
a caminho da eternidade.

Mãos sempre fechadas sobre si mesmo
e de rapina
alcandoradas nas escarpas
embriagadas no olhar
da solidão.

Mãos de fada
iluminadas e cegas
por esplendorosas madrugadas.

Mãos
içando velas de navio
mantendo rumo
decifrando o vazio.

Mãos de pescador
de cana imóvel na falésia
pendurado
numa tarde
de Verão fora de tempo
em que nada
nenhum peixe acontece.

Mãos
que são penas
com a subtileza  dos poemas
violentamente
presas à vida.

Lisboa,  Outubro de 2014

Carlos Vieira

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