sábado, 26 de março de 2016

Nota epistolar II


O homem
desempregado
é uma silhueta
ou uma transparência
“a idade não ajuda!"
caminha todo nu
com as mãos
nos bolsos vazios
é uma ilha
frágil embarcação
tem o rumo das filas
“dos desempregados
de longa duração"
em direção ao guichet
do centro de emprego
na sua cabeça
tudo anda à roda
enquanto preenche
o formulário
as palavras dançam
juntamente
as prestações da casa
por pagar
"desculpe podia repetir!"
há um cisma na família
antes éramos tão unidos
é claro que há sempre
uma tendência
para a fragmentação
é a física
"oh criatura
onde é que você
está com a cabeça!"
há sonhos em ruínas
“tem que ter
um espírito empreendedor!"
podemos sempre
reerguer-nos
subir a pulso
“desça à terra
senão não saímos daqui!"
há sempre alguém
que lhe bate nas costas
com as palavras
de incentivo
que ouve já longe
"vai ver que aparece
qualquer coisa!"
foge de casa
e a casa vem atrás dele
“ o seu problema
é que tem demasiadas
qualificações!"
e tem fome também
sem palavras
outro problema
sempre viveu entre
a realidade e a fição
sem as distinguir
uma certa loucura
uma certa falta
de pragmatismo
“só não trabalha
quem não quer trabalhar!"
o homem desempregado
prosseguiu
uma testemunha ocular
ainda o viu
pela última vez voar
da ponte até ao rio
e assim desceu
o desemprego
"também não andava
cá a fazer nada!"
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Foto de Carlos Spottorno

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