Trazia barba de meses e sobretudo de anos, desemprego de longa duração e um olhar de bicho a condizer, de quem transporta resignado a sua cruz.
Vendia pensos rápidos ao desbarato para sobreviver no exílio do seu próprio país, gravemente ferido, vendido agora ao desbarato, depois que viveu acima das suas possibilidades, proclamam alguns peritos em economia e em estudar factores de sustentabilidade.
Havia condutores que abriam os vidros e lhe davam umas moedas, não queriam os pensos e hoje tudo lhe iria correr melhor, uma boa acção por dia.
Havia aqueles que abanavam a mão de dentro dos automóveis, que trabalhavam, que pagavam religiosamente os seus impostos, nem se dignavam a olhar e seguiam em frente, aqueles que tinham horror a pobres e (ou) contaminações.
Todos nós esquecidos dos pequenos ferimentos que podem infectar e dos pequenos gestos que podem salvar vidas, pensou um condutor que falava com o homem de barba hirsuta e a saliva na comissura dos lábios.
Surpreendeu-o o facto do sem abrigo saber falar e ter ideias muito arrumadas. "Desculpe tenho que avançar, porque já estão a apitar! Gostei de falar consigo!"
Aqui estamos nós, em farrapos, tantas vezes espectros assaltados, por precários reflexos das nossas pequenas mortes diárias, só porque estamos distraídos.
Porque não respeitamos os sinais, não somos previdentes e poupamos, dizem os arautos da ponderação, acabamos a vender penso rápidos, Cristos coroados de espinhos, nas encruzilhadas das nossas curtas vidas.
Lisboa, 8 de Março de 2014
Carlos Vieira
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