Um silêncio
para mim desconhecido
apodera-se dos objetos da cozinha
tu estás ausente
e os teus sabores também
descrevo de cor
uma lista de ingredientes
e pouco sal
as mobílias de madeira
envernizada
adquiriram um brilho pálido das casas
abandonadas
ainda ali poderia ainda reeencontrar
para lá da poalha
o deslizar da volúpia dos teus dedos
por acaso o meu olhar dirige-se
para o lugar
onde não deverias faltar
e reconheço
a indestrutível dimensão que davas
aos pequenos espaços
as cortinas deixam passar
agora como dantes
a luz do crepúsculo
que já não te encontra desnuda
perante o meu desejo
vem acompanhada do ruído do tráfego
esse ensurdecedor rumor do sangue venoso
que corre nas ruas da grande cidade
que tu sobrevoavas
com teu olhar de adormecer a dor
e de arrasar a solidão
e fazer tremer as esquinas
e de fazer sorrir as superfícies espelhadas
tento-te surpreender
nos teus inconfundíveis
gestos domésticos em que te reconstituo
mas reencontro apenas o ocre do vazio
o percurso de retorno do teu eco
no aroma familiar já distante
dos teus beijos cálidos
a pairar apenas na única memória
que ainda torna mais afogueada a respiração
há cabides a mais no guarda-roupa
e lembro-me da bruma volúvel dos tecidos
segunda pele do teu corpo
onde rasgava noites e madrugadas
percorro as divisões
onde encontro pedaços de ti
um gancho do cabelo do princípio dos tempos
dos nossos tempos
o rubor da cumplicidade das acácias a acenarem
na janela poente da sala
as tuas mãos em estrela
no cobre das torneiras em flor do lavatório
em que te observava
ávido das tuas mãos em concha
o recanto onde me cercaste
e me encostaste à parede
e fizemos amor pela última vez
derrubando todos os muros
a casa em silêncio
permanece para que não se quebre
a serenidade do teu rosto
no dia em que partiste
e as palavras que dos teus lábios
saíram mansamente
falando de uma viagem
que eu nunca suspeitei
não ter regresso
porque não tinha fim.
Lisboa, 20 de Março de 2014
Carlos Vieira
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