sábado, 1 de novembro de 2014

A morte está de passagem



As fitas brancas a dizer polícia, em azul, delimitavam uma parte do passeio e da avenida, elegiam um jardim improvável, a irromper no meio do asfalto. À volta do cenário, pirilampos azuis e vermelhos, os focos de algumas lanternas, ocupavam-se dos diferentes ângulos da ocorrência, de iluminar as diferentes versões e objectos.
Havia um sorumbático candeeiro a uns dez metros do local do crime, não se tratava de um acidente como muitos acreditavam, um atropelamento com fuga, quanto muito. Ali e acolá néones publicitários, lá prosseguiam a sua estratégia de marketing, indiferentes ao turbilhão de emoções que hoje, teve ali o epicentro.
Algumas janelas dos prédios contíguos faziam o tal puzzle de luzes, de intensidade diferenciada, alguns residentes comentavam, de forma mais ou menos apaixonada, à janela com os vizinhos a completa ignorância do que se tinha passado, naquele evento noturno, outros permaneciam em silêncio e aproveitaram para mais um cigarro.
Os peritos forenses, nos seus fatos de anjo vestidos de branco, procurando ser objetivos dão asas à imaginação, em busca desesperada do vestígio imaculado e do pecado.
Os investigadores criminais rodopiam, indagam, procuram o móbil, confrontam, enfrentam a mínima luz, afastando a sua própria escuridão e morte, perguntam às testemunhas, aos técnicos, aos desconhecidos suspeitos, ao corpo, feito cadáver. Por momentos, nas palavras daqueles e nos seus gestos, um pequeno interregno, naquilo que será a solidão eterna.
Entre lágrimas e suspiros os familiares olhavam para o cadáver, incrédulos, perguntam-se como pode ter morrido, aquele que era uma pessoa boa, que não fazia mal a uma mosca, assim, desta forma no meio da rua, sozinho, desconheciam as palavras do poeta “que seja eterno em quanto dure”, a vida e o amor.
Comenta-se à boca calada que foi alvejado, que se ouviram dois ou três disparos, pelo que a arma poderia ser um elemento determinante, para se poder chegar ao autor.
Será que o mesmo não a deixou por ali, dado que agora a mesma queima, apontando a partir de agora, sempre para a sua responsabilidade ou será que o autor é um facínora, requintado homicida que tem uma fria relação, vingando a sua vontade, a utilidade permanente da arma do crime.
Poderia estar por ali, atirada para o seio de alguns arbustos, alguns metros à frente do local do crime, era necessário realizar desde já, buscas exaustivas.
Os curiosos foram-se afastando, o corpo foi levado para o IML, foi saindo de cena quem não era de cena, apenas as viaturas da polícia, as lanternas como enormes pirilampos foram alargando a área de investigação.
Verificavam esconsos, sargetas, papéis caídos na via pública. Os flashs das máquinas digitais que foram registando para mais tarde recordar. Os diversos croquis ultimavam-se, tentando esquematizar a emoção e o caos que se passaram no lugar do morto.
Foram-se apagando as luzes dos prédios, ouviam-se murmúrios e sussurros dos investigadores e da vizinhança.
Três tiros, pelo menos, tinham troado e relampejado, que ninguém ouvira ou vira, ninguém se compromete, igualmente, ninguém conhece a vítima que vivia há anos, a cerca de cinquenta metros do local.
Por fim, um grito de alegria ergueu-se estranhamente no adiantado da noite fria, um investigador, apontava para o meio de umas ervas altas, num campo ali próximo e dizia para os colegas. “ É um 38, é um 38!”
Num snack ali próximo já fechado, o proprietário comentava com um cliente que aquilo tinha sido um problema de trânsito, entre a vítima e um peão que se tinha insurgido na passagem da passadeira com um indivíduo que se deslocava num Audi, cinzento metalizado, o qual tinha tido difícil anuência em o deixar passar. O indivíduo de meia idade, saiu do carro sem dizer uma palavra, dirigiu-se ao peão e deu-lhe três tiros a dois metros, quando o mesmo se virou para ele.
Soube-se mais tarde que o autor era um comerciante que se dirigia a casa, a explicação que deu para o horrível acto que cometeu foram os seguintes, o negócio com esta crise estava mau, acabara de ter mais uma discussão ao telemóvel com sua mulher, por estar sempre a chegar tarde a casa.
Mas o copo de água foi aquele indivíduo que não passou, passeou pela passadeira, que lhe virou as costas, nem sequer lhe agradeceu, estava assim a pedir para ir passear para outro mundo.

Lisboa, 1 de novembro de 2014
Carlos Vieira




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