quinta-feira, 13 de novembro de 2014

No meu portfólio


No meu portfólio
levo o sorriso
 a espraiar-se no teu rosto
flor bruxuleante
que fere
o azul metálico
no céu do barlavento

no meu portfólio
arquivo
as tuas mãos
molhadas
no ninho do teu colo
em silêncio pousadas
depois de me libertarem
do caos
com teu enleio
soltando as cores e os aromas
de um qualquer jardim

no meu portfólio
existes quando
desces a alameda
dos sonhos
com aquele vestido negro
e de braços nus
e tu atónita
embevecida
a ouvir um violino
estremecias
por cada nota em falso
que divergia
a cada tinir de moeda
que num boné
caía

no meu portfólio
ainda te reconheço
a preto e branco
tu que ali vais
em paralelo
sem nunca te encontrares
com aquele rio escuro
por sua vez
o rímel descia
pelo teu rosto
máscara
de uma alegria húmida
que se foi desvanecendo



no meu portfólio
do meu desvelo
tenho neste envelope
um pedaço de ti
recordo-te
teu cabelo castanho
em desalinho
depois de um confronto
inesperado
com o vento
sobes rua acima
focada em resolver
definitivamente
aquilo que por ti própria
nunca poderias
conseguir
fora de ti

no meu portfólio
guardo ainda
naquele retrato
límpido
esse olhar
onde descansei
que nos iria
levar para dentro
da gruta
das nossas Mil e Uma Noites

no meu portfólio
não posso esquecer
que trago protegido
das intempéries
e dos fragilidades
dos momentos
a imagem fulgurante
de quando me esperavas
na esplanada em tons de sépia
pássaro do eterno
desassossego
inquietação
de qualquer lugar

no meu portfólio
este flagrante
de quando chegavas
à estação do Parque
um pouco descuidada
indescritível
era porém a tua ternura
subterrânea
apanhávamos
a última carruagem
e o teu corpo desesperava
pela avidez
de uma haste de sol

no meu portfólio
a lanterna
do arrumador
encontrava-nos
num recanto
da terceira fila
do enlevo
de amor recente
com o brilho  
do foco de projector
por cima das nossas cabeças
a atravessar o tempo
os gestos mínimos
da cumplicidade máxima
de um desejo sem tecto
adolescente
das legendas a embaciarem
e o fogo dos teus lábios
a enxamearem
a última sessão de um filme
que para sempre
havíamos de desconhecer
o final

no meu portfólio
aquele fragmento
de mar cortado
pelo picotado
numa praia de inverno
ali perto
e nós presos pelas garras
de uma paixão
sem piedade e sem espaço
éramos sobrevoados
por toda a imaginação e asas
de gaivota
num ruído ensurdecedor
de sangue
e grasnidos polifónicos

no meu portfólio
por vezes
chega-me à memória
o cheiro a resina no pinhal
a que se sobrepôs
o néctar
decorrente do teu corpo
a desenvoltura 
das tuas pernas brancas
e dos pinheiro verdes
a rodopiar
a rima
das feridas nos troncos
e da insondável solidão
de musgo
no percurso insaciável
dos meus dedos

no meu portfólio
ali estavas
na tua beleza inacessível
de estátua de alabastro
com sonhos de aurora boreal
nunca te compreendi
nesse dialecto
de deusa
que atravessou todas as noites
da minha recorrente utopia
e se te abracei depois
se sobrevivi
neste fotograma
da eternidade
no cloridrato de prata
foi porque
já não tenho medo da morte
e cego de olhar o sol
e na partilha
de uma inadiável demência
nos possuímos
num inexplicável  infinito
a dedilhar carícias.

Lisboa, 13 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


“Fragmentos de vida”  de Marta Orlowska


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