quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Pequenos conflitos de José Guerra

Pequenos conflitos de José Guerra

José Guerra, as pessoas da aldeia mantinham uma distância, não pela infeliz coincidência do nome, mas porque nunca se sabia quando podia atacar, se alguém se aproximava da sua propriedade, já para não falar de sem querer ou por desconhecimento a poder pisar. Aí, era uma carga de trabalhos. 

Não dava o mínimo sinal de condescendência, ficava ali, naquele círculo do orgulho ferido, naquela solidão animal, de fera encurralada.

Podia por mero acaso, fazer uma aliança estratégica, no entanto mantém-se ali de garras afiadas
e cara de poucos amigos, diria de nenhuns amigos. 

Vivia, básicamente, do que produzia e de pequenas compras que fazia, nas raras visitas à mereceria, onde rosnava qualquer coisa parecida com palavras e atirava umas tantas moedas.

O azedume dos anos sobrepostos, endureceu-lhe o olhar, estreitou-lhe os lábios, não fosse escapar-lhe um improvável sorriso e as palavras tinham de sair-lhe da boca, como arestas vivas e como pedras polidas. 

Nas raras saídas que fazia do seu covil, deixava que caísse o crepúsculo e ía algures a contar os troncos do pinhal que ainda lhe pertenciam e senão teria havido alteração dos marcos.

Olhava da janela, entre as lâminas do estore com seu olhar afiado. De paz, o único sinal é o fumo branco que numa pequena coluna se escapa da chaminé.

A família já há muito que não tem contacto com ele, terá uns longínquos familiares na zona de Odemira, no entanto, ele há décadas que se mantém o mais distante possível da humanidade.

Algures quando era miúdo e andava a juntar as primeiras letras, recordo-me de um único sinal de fraqueza, não sei porque razão, uma folha de papel onde tinha feito algumas letras, amarfanhado, foi-lhe parar às mãos e percebi como o seu olhar sorria, depois olhou para um lado e para outro não fosse ser apanhado, a decifrar a humanidade.

Soube mais tarde que tinha vindo da I Guerra gazeado e que aquela casa continuava a ser a sua trincheira, nós, nós éramos todos alemães.

Amarfanhadas eram as cartas que chegavam à frente de combate e que a todos ajudava a acender a  fogueira ou a passar o Inverno gelado.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

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