segunda-feira, 31 de março de 2014

My old body




My old body:
a ladder of sunlight,
mercury dust floating through--

My forgivenesses,
how you have learned to love me in my sleep.


-- Jean Valentine
Door in the Mountain: New & Collected Poems 

OS VELHOS IMBECIS



Que pensam eles que aconteceu, os velhos imbecis,
Para os tornar nisto? Acaso lhes parece
Que é mais adulto quando a boca descai e te babas,
E te mijas outra vez, e não recordas
Quem veio esta manhã? Ou que, se pudessem escolher,
Fariam recuar as coisas a quando dançavam toda a noite,
Ou se casaram, ou assentaram praça num Setembro qualquer?
Ou imaginarão que realmente nada se alterou,
E que sempre se comportaram como se fossem aleijados ou inábeis,
Ou ficaram sentados dias a fio de fraco sonhar contínuo
Vendo a luz mudar? Se não o fazem (e não podem), é estranho:
Porque não gritam?
Ao morrer, desfazes-te: os bocados de que eras feito
Apressam-se a separar-se para sempre
Sem ninguém ver. É apenas esquecimento, é verdade:
Sabiamo-lo antes, mas então caminhava-se ainda para o fim,
E todo o tempo era afundado num esforço único
Para fazer desabrochar a flor de mil pétalas
De estar aqui. À próxima não podes fingir
Que haverá algo mais. E são estes os primeiros sinais:
Não saber como, não ouvir quem, perdida
A capacidade de escolha. Pelo aspecto sabe-se que estão acabados:
Cabelos cinza, mãos sapudas, cara enrugada de ameixa seca -
Como conseguem ignorá-lo?
Talvez ser velho seja ter quartos iluminados
Dentro da tua cabeça, e gente neles, representando.
Gente que conheces, mas não sabes nomear: cada um aparece
Como uma profunda perda recuperada, vindo de portas conhecidas,
Pousando um candeeiro, sorrindo de uma escada, tirando
Um livro conhecido das estantes; ou por vezes apenas
Só os quartos, cadeiras e um lume acesso.
O arbusto soprado na janela, ou a pálida
Amizade do sol na parede de algum solitário
Fim de tarde de verão depois da chuva. É aí que eles vivem:
Não aqui e agora, mas onde tudo outrora aconteceu.
É por isso que eles mostram
Um ar de ausência confusa, esforçando-se por estar lá
Já estando aqui. Porque os quartos afastam-se, deixando
Um frio inqualificável, o desgaste constante
De retomar a respiração, e eles curvados sob
A montanha da extinção, os velhos imbecis, sem nunca perceberem
Quão próxima está. Deve ser isto que os mantém calados:
O cume que se avista onde quer que vamos
Para eles é um pequeno monte. Não saberão nunca
O que os arrasta para trás, e como irá acabar? Nem de noite?
Nem quando os estranhos vêm? Nunca, durante
Toda esta odiosa infância invertida? Bom,
Havemos de descobrir.

A dificuldade de viver um grande amor


A dificuldade
de não te saber amar
de não ter estudado
de ser analfabeto
nessa arte maior
de não estar atento
de não o sopesar
de o desconhecer 
quanto te é precioso
qual é o seu valor
de não o reconhecer
ou ser já muito tarde
a inoportuna dificuldade
de se fazer o lugar do amor
e do momento
que exige a humildade
de estar disponível
sempre disponível
de encontrar o gesto
das palavras entarameladas
e ter na mesa e ter os objetos
e tudo ser tão natural
o ângulo escolhido da luz
e da sua intensidade
para que possas cintilar
porque fui desconhecer
os mínimos ingredientes
de um grande amor?
depois é deixar a porta
aberta e ficarmos nós nus
e deixar acontecer
o acto delicado de despir
e o mais sagrado de vestir
saber despojar-nos
dessa vacuidade
que por vezes nos atinge
pelo preconceito de amar
sem compreender
o que devemos fazer
para trazer até nós
os que amamos
e deixar aproximar
os que nos amam
o que devemos dizer?
como os devemos olhar?
quais as palavras
que possam despertar
o fogo e sarar a dor?
e aquelas que podem
perdoar e consentir
a misericórdia
ou viver a glória
de
no amor
sermos sempre vencidos
e vencedores
este é todo o conhecimento
que carrego
isto é tudo
o que possuo meu amor
é tudo para ti
e esta vontade
de te voltar a encantar
desencantando
toda e qualquer forma
de te amar.

Lisboa, 31 de Março de 2014
Carlos Vieira

Fonte de felicidade



Um largo redondo
no meio um lago redondo
e um repuxo de água sem fim
no retângulo da janela
todos os dias os reutilizo
os revejo moldura familiar
que revisito e revejo sem fim
a mesma água às voltas
no mesmo largo redondo
o mesmo lago de sempre
meio cheio ou meio vazio
todos os dias abro a janela
pela primeira vez e hoje
de olhos marejados da alegria
de te reencontrar debaixo
do chuveiro e cresce em mim
extraordinário um repuxo
de felicidade sem preço
nem moedas no fundo do lago.

Lisboa,31 de Março de 2014
Carlos Vieira



                              Imagem de Anita Ekberg em “Dolce Vita” de Federico Fellini

domingo, 30 de março de 2014

Quase poemas de gente

quase poemas de gente

nómada
o sábio dos caminhos 
e das bermas
dos despejos 
sem habitação fixa

sem-abrigo
que não tem habitação
sábio de fissuras 
de pontes 
e caixas de papelão

desempregado
de longa duração
sábio do vazio
da solidão 
e dos tempos 
quase sempre mortos
que perde o pé 
e vai perdendo a mão

jovem à procura 
do primeiro emprego
sábio do nada 
e do vale tudo
e que trabalha 
de borla 
para ganhar
experiência
e ser competitivo
mais um herói
à procura

a mãe solteira
tem extraordinária 
dificuldade
em deixar o filho 
para ir trabalhar 
e em arranjar trabalho 
porque tem um filho
sábia do amor 
das pequenas coisas
e de curta duração

doente terminal
sábio dos cuidados paliativos
e da sua ausência
e de querer que a morte 
venha depressa
sobrevivem na esperança 
de não morrer
como um cão
e dar menos trabalho 
e menos despesa

velho do interior
sábio da desertificação 
sem crianças 
é um facto 
que só dão trabalho
porque não podemos 
ter tudo
em todo o lado
e o interior também 
não faz falta nenhuma
e sempre se pode tirar 
qualquer coisa da terra.


Lisboa, 30 de Março de 2014
Carlos Vieira

sem passado, assalto fotografias

Sem passado, assalto fotografias

alheias e integro-as à memorabilia
mais próxima, que por acaso é a minha.
Me conta a fascinante história da sua vida,
leio num outdoor imaginário, que faria
facilmente do recém-falecido Salinger
o autor dos Minutos de Sabedoria.
A única e burra sabedoria de que somos
capazes é a de ver sumirem os nossos
um a um. Depois do avô, um cachorro,
assim sucessivamente, sem naturalidade alguma.
Cada coisa, tanta gente, para onde caminha
tão frouxo coração? À esquerda de quem entra,
diz meu personal salinger. Vou pra sala
e a sala é um poço. Bem localizado no sofá,
começo a assistir pela undécima vez
a Blade Runner. E cheio de esperança
penso no futuro de milhares de pessoas,
entre as quais, os replicantes.

leonardo gandolfi





Negligência ou fogo-posto

Louca
vive no fim do lugar
na margem da floresta
à noite 
pousar-lhe-ia
a coruja num ombro
e os lobos
desciam as montanhas
e vinham-lhe comer
à mão
altas horas
faíscavam espantosas
fosforências
e saíam dali homens
tenebrosos
rezavam as má-línguas
que era tentada
pela poesia
e dada ao mau-olhado
o povo falava
de tudo aquilo a contragosto
até que um dia
um incêndio devorou a louca
e a sua casa
dividia-se a aldeia
comentando
abertamente ou entredentes 
que tinha sido 
providência divina 
fogo-posto!

Lisboa, 30 de Março de 2014
Carlos Vieira




DA POESIA MODERNA



O poema da mente no ato de encontrar
O que há de bastar. Não teve sempre
De encontrar: a cena estava armada; repetia o que
Estava no roteiro.
                            Então o teatro foi mudado
Para uma outra coisa. Seu passado um suvenir.
Tem de estar vivo, aprender a fala do lugar.
Tem de encarar os homens do tempo e encontrar
As mulheres do tempo. Tem de pensar na guerra
E tem de achar o que bastará. Tem de
Construir um novo palco. Tem de estar nesse palco
E, como um ator insaciável, lentamente e
Com meditação, dizer as palavras que no ouvido,
No delicadíssimo ouvido da mente, repitam,
Exatamente, aquilo que se quer ouvir, ao som
Do qual uma audiência invisível escuta,
Não a peça, mas a si mesma, expressa
Numa emoção como de duas pessoas, como de duas
Emoções tornando-se uma. O ator é
Um metafísico no escuro, tangendo
Um instrumento, tangendo uma corda tensa que dá
Sons que assumem repentina correção, de todo
Contendo a mente, abaixo da qual não poderá descer,
Além da qual não tem vontade de subir.
                                                                      Tem de
Ser o encontrar de uma satisfação, e pode ser
Um homem patinando ou uma mulher dançando, uma mulher
Penteando-se. O poema do ato da mente.

Carta simples


Hoje quis escrever-te e não consegui.
Pesam-me os verbos como pedras
nestes dedos, mas vês,
é sobre ti que se debruçam as palavras
que não saem
e nestes olhos a gratidão
de saberes sempre quando preciso da tua mão
na face, quase materna, quase amante,
e azuis os rasgos de ternura
de uns olhos castanhos e
meigos
que me libertam das águas revoltas
onde lutam os meus neurónios
em batalhas estéreis e sem sentido.
Tens sido tu o porto de abrigo
que me recolhe nas paisagens desse País
que escondes no teu corpo e no teu nome
e me dá uma paz profunda
e me asseguras na minha infantil insegurança
que o passaporte que assinaste para eu aí viver
é vitalício e sem encargos,
esse País tão infinito onde me quero nacionalizar
e ter asilo.
Se conseguisse, hoje tentaria explicar-te
que as razões da minha insegurança
vêm do facto de que quando me multiplico
nos jardins que escolho com cuidado
a água desaparece sem razão
correndo aos poucos para outros rios,
desidratando-me os afectos.
Sou inseguro e insistente
devido à inevitabilidade de que perpetuarás
esse ciclo, e que tenhas medo e fujas
e ergas muros que ficarei a contemplar
com os meus olhos tristes
que te dizem tanto sem dizerem nada,
excepto não tenhas medo,
não fujas,
não vás,
não sejas um rio
onde estas raízes não bebam.



w.d. sevahc




Jardinagem



De vez em quando
volto àquele jardim
não só pelas flores
mas regresso a mim
como se os odores
me fizessem pensar
a essência de outros
que as minhas dores
são os seus espinhos
e que pétalas caídas
são lágrimas e rastos
espanto dessas vidas
e quando as corolas
desabrocham revelam
segredos inconfessáveis
ou até imploram esmolas
a abelha anda em redor
a procurar o doce mel
e prova o sabor do fel
enfim se penso voltar
ao último abrigo da alma 
sou jardineiro enredado 
na teia do meu coração
pobres são as plantas
que no melhor de mim 
procuram sustentar-se
sendo que é função
de cada um de nós
também ser para vós
sombras e perfumes
e arbustos de jardim.

Lisboa, 30 de Março de 2014
Carlos Vieira





Uma vida por um gato



sei de um gato
que passou a vida
pensativamente
á janela
bem interrompia
esses momentos
de aturada
reflexão
e num àpice 
bebia aquele leite
meio-gordo
que o espetro 
da sua dona
religiosamente
todos os dias
da sua vida
lhe abastecia 
a tigela
e cada um
é para o que nasce
uns deviam ser gatos
outros não.

Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira

Anatomia de um abandono

Não sabe onde 
te perdeu
nem porquê
que palavra te doeu
ou ficou por dizer
talvez o olhar
que não cuidou
ou distante
te esqueceu
que gesto te magoou
quando julgava
que te abraçava
foi a distância 
ou a sua urgência
foi um beijo breve
que quiseste
mais quente
foi a demora
ou não querer 
dizer-te que não
foi esquecer
ou a sofreguidão
amar-te
foi não saber
que existes
num momento
e num espaço
que não podes
compreender
ou que te perdes
apenas
por respirar.

Lisboa, 29 de Março de 2014 
Carlos Vieira





sábado, 29 de março de 2014

A cortina diáfana...

A cortina diáfana
deixa passar
a luz timída da tarde
no meu desvelo
embevecido
na cadeira de vime 
tu cochilas
em trajes menores
sequela 
de um amor maior
minha Emanuelle.

Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira




os primeiros encontros

cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.









arsenii tarkovskii8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




Coisas


há coisas que vão ficando 
fotografias   louças   contas antigas 
                            não sei 

debruçámo-nos tanto 
sobre a minúcia do quotidiano 
       que o dia a dia excedeu as nossas vidas 

não sei como resiste o que perdura 

olho o telefone de coração na boca 
e aponto coisas para não me esquecer 

Luís Amorim de Sousa, in 'Nadar no Escuro"

COMISSÃO DE SERVIÇO



Ide, cantos meus, ao solitário e ao insatisfeito,
Ao nevrótico também, ao que por convenção não é escravo,
Mostrai-lhe meu desprezo por quantos os oprimem.
Ide como alta vaga de água fria,
Fixai o meu desprezo pelos opressores.

Prégai contra a opressão inconsciente,
Prégai contra a tirania do inimaginável,
Prégai contra os acordos.
Ide à burguesia que morre de seus tédios,
Às mulheres nos subúrbios,
Aos noivados revoltantes,
Àqueles cuja falência foi dissimulada,
Aos amantes infelizes,
À esposa comprada,
À mulher vinculada.

Ide àqueles que têm gostos delicados,
Àqueles cujos delicados desejos são frustrados,
Ide como uma praga sobre a estupidez do mundo;
Ide com vosso gume contra isto,
Reforçando as cordas subtis,
Levai confiança nas algas e nos tentáculos da alma.

Ide de maneira afectuosa;
Ide com um discurso claro,
Sede ansiosos por encontrar novos demónios e novas bondades,
Sede contra todas as formas de opressão.
Ide a quantos emagreceram pela meia-idade,
Ide a quantos perderam seus interesses.
Ide junto do adolescente que é amolecido na família –
Oh como é odioso
Ver três gerações numa casa existindo juntas!
É como uma velha árvore com rebentos
E com alguns ramos secos e a cair.

Ide-vos e não cuideis de opiniões,
Ide contra esta escravidão vegetal do sangue.
Sede contra toda a espécie de amortizações.


EZRA POUND
(versão portuguesa de Fernando Guedes)

À espera dos Bárbaros


O que esperamos nós agora aqui reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução. [Antes de 1911]

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Konstantinos Kaváfis (1863-1933) – trad. de José Paulo Paes

A oeste nada de novo


Sentou-se na esplanada
estratégicamente voltado 
para oeste
pediu um copo de água
o empregado assentiu 
contrariado
mas para ele 
nada podia contaminar
a sede da silhueta
a desevencilhar-se 
dos arbustos e das árvores
do jardim
a sua progressiva 
libertação das sombras
o contraste da delicadeza 
dos seus gestos
cristalinos
e da inacreditável doçura 
da sua face
com o fogo a crepitar
no seu olhar
e cada vez que a recordava
bebia um gole da água
que o empregado 
trouxera contrariado
e a oeste da esplanada
nada de novo.


Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira



"le tiers exclu"...

"(...) Talvez

a língua francesa seja mais exacta? ou todos
sejamos igualmente exactos, cada qual
na sua língua mãe? mais leves? Admirava
a boca de B., as palavras francesas na boca de B.
mais francesas do que as palavras francesas na boca
do homem suíço, que era teólogo e alemão, possivelmente.
Os estrangeiros nunca falam a língua francesa
com a desejada exactidão, com a clareza
típica da língua francesa falada por uma boca
igualmente francesa, e a boca de B.
era uma boca francesa, como a roupa de B.
era uma roupa francesa, e o corpo de B.
escondido no avesso da sua roupa francesa
era um corpo francês, inteiramente
alheio ao homem suíço menos jovem
à teologia e à santidade do homem suíço ansioso
por seduzir com a inocência todos os
jovens inocentes ou não inocentes à vista
na praça oval chamada Wilson, que éramos
nós, B. e eu. (...)"


excerto de "le tiers exclu, fantasia política", do livro Quatro Caprichos (Lisboa: Assírio & Alvim, 1999), de António Franco Alexandre.

O insustentável conhecimento dos animais





 «Aos homens deu Deus uso da razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes, o uso sem a razão» do capítulo II do Sermão de Santo António aos Peixes?

Fui até à margem do rio
uma galinhola escapuliu-se 
estridente pelo canavial
e todas as minhas reflexões
abandonaram-me loucas
e foram a correr atrás dela
fiquei sentado ao pé mim
contrariando o eu caçador
ancestral quedo sem saber 
o que pensar junto ao rio
que me trazia e me levava
um caudal de recordações
dali a pouco oiço o restolhar
dos pensamentos na feroz 
perseguição e a galinhola 
veio aninhar-se atordoada
aos meus pés enquanto
falávamos eu barbos e bogas
da pesporrência do rouxinol.

Lisboa, 29 de Março de 2014


Carlos Vieira

sexta-feira, 28 de março de 2014

Enquanto chove...

Enquanto chove
à mulher ocasional
ouço-lhe todo o rosário
de lamentações
que a todos corrói
no abandono do quintal
em simultâneo
oiço toda a manhã
os pingos de chuva
na bacia de esmalte
em requiem de fundo.

Lisboa, 28 de Março de 2014

Carlos Vieira

quinta-feira, 27 de março de 2014

Panorâmica VII



Chegou à praça, um imenso rectângulo onde o sol ameaçava qualquer sombra
já ele ía alto na manhã e do extraorinário rectângulo do teu leito escorriam os lençóis
tu eras uma estátua de pedra onde correram um dia sonhos de água e adormeceu o fogo.

Lisboa, 27 de Março de 2014
Carlos Vieira

Panorâmica VIII



O cavalo resfolgava, correndo de um lado ou outro na frente do exército que expectante aguardava, os estandartes erguiam-se flamejantes e nas pontas das nervosas lanças, o sol dardejava, as lâminas afiadas das espadas suspiravam, os arcos ardiam de desejo pelas inquietas setas, o general conhecia em detalhe todas as suas armas e estava confiante que 
a transcendência de alguns dos seus homens pudesse vencer a desconhecida cobardia 
e traição de outros, o resto ele confiava na incrível capacidade de encontrar o ritmo da batalha, 
de perceber a perturbadora vantagem de conhecer, sentir o pátrio terreno e a esperançosa 
resposta que dera perante os últimos apelos desesesperados da sua amada que em preces 
e ânsias, aguardava, se a desdita da derrota o acometesse por certo a venderia muito cara.

Lisboa, 27 de Março de 2014
Carlos Vieira

Panorâmica VI



Chegou ali em frente ao mar como de costume azul e não faltou, na areia dourada,
apenas as ondas às voltas e até aí, tudo normal, apercebeu-se de uma mancha branca 
ao lado esquerdo da cena, um rosto forrado à rocha negra, chorava de raiva em silêncio.

Lisboa, 27 de Março de 2014
Carlos Vieira

Panorâmica V



O seu olhar convergiu para o pinhal e perdeu-se nos troncos castanhos e nas cabeleiras verdes
do interior de súbito num barco a remos a rapariga de longo cabelo ruivo que a deixa seminua
e na boca sentia-se o sabor breve dos pinhões e no ar enlouquecia o aroma intenso da resina.

Lisboa, 27 de Março de 2014

Carlos Vieira

quarta-feira, 26 de março de 2014

Vistas panorâmicas IV



O ciclista erecto em cima do selim pedala estrada fora na berma longitudinal do asfalto 
os riscos amarelos descontínuos até perder vistas dividem o mundo em dois sentidos
um ramo seco de arbusto sobrevoa o caminho mais à frente há um rasto de travagem.

Lisboa, 26 de Março de 2014
Carlos Vieira

Vistas panorâmicas III



O rio atravessa-lhe a página em branco e quase se ouvia a corrente
antílopes ruminavam o horizonte castanho e as folhas do canavial 
lambendo fechou tudo no envelope e endereçou-o à família distante

Lisboa, 26 de Março de 2014
Carlos Vieira

Vistas panorâmicas II Loures


As faias e os ciprestes erguem-se no seu testemunho vertical carregado de verde e prata
a igreja amarela descansa por detrás com o seus quatro sinos de assinalar a morte de bronze
pelo meio a fronteira cor de rosa de um muro onde floresce o alumínio do arame farpado

Lisboa, 26 de março de 2014
Carlos Vieira


Vistas panorâmicas I - S.º Jorge


vigio a serenidade da tua silhueta sentada a ler o romance que nunca conhecerei debaixo do alpendre 
o azul deitado do canal suspira fragmentos de espuma perante a atenção do Pico perpendicular ao fundo 
e à direita entre os bocejos de um castanheiro tímido os ouriços vivem pendurados na luz  do crepúsculo.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


Estribo

Estribo
um pequeno osso
que faz a grande diferença
entre o "sussúrio"
e o murmúrio.

Lisboa, 25 de Março de 2014
Carlos Vieira

Um tempo...


um tempo de aniquilar 
sobretudo
o semelhante

Lisboa, 25 de Março de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 25 de março de 2014

Em cada um de nós...

em cada um de nós
cresce um facínora
e um penitente

Lisboa, 25 de Março de 2014
Carlos Vieira

Não consigo...

Não consigo suster
todos os demónios
que em mim habitam
aos anjos ninguém
acredita.

Lisboa, 25 de Março de 2014
Carlos Vieira

A gota de água...

a gota de água
que faz transbordar o copo
é a mesma que nos sacia

Lisboa, 25 de Março de 2014
Carlos Vieira

Descer à Terra...

Descer à Terra
para te salvar
de te encharcares
em barbitúricos
a partir 
da minha filosofia
de alcova
subimos de novo
aos céus
dos enganos
ledos e cegos.

Lisboa, 25 de Março de 2014


Carlos Vieira

segunda-feira, 24 de março de 2014

A dor que se avizinha



Na casa contígua
um casal
discute e insulta-se
entende-se
ciúme e a raiva surda
que perpassa
a noite intramuros
acusam-se
até que alguém chora
talvez os filhos
são efeitos colaterais
a ressoar
na minha insónia
no poema
paredes meias
sofremos 
expiamos nossos crimes
espiando 
a culpa dos outros.

Lisboa, 24 de Março de 2014
Carlos Vieira




O canto do galo



O canto de um galo
a estilhaçar a noite
com suas esporas
a rasgar o seu véu, 
quem dera que possa
um dia despertar
a tão esquecida
humanidade.

Lisboa, 24 de Março de 2014
Carlos Vieira

Tenho uma rola na chaminé




Tenho uma rola na chaminé
o sol chegou depois da chuva
uma brisa suave corre agora
a tarde vai deitando sombras
eu escrevo toda a banalidade
miséria não é aqui chamada
sobre a natureza um silêncio
se abate é o sono dos justos
que merda como poderia ser
mais eloquente o que escrevi
tivesse o sol chegado fulgurante
antes da chuva e do silêncio
ou da miséria e por inutilidade
me pudesse calar para sempre
e a rola me deixasse trabalhar.

Lisboa, 24 de Março de 2014

Carlos Vieira

falta d’ar



saio à rua
para apanhar ar
o gorjeio dos pássaros
o zumbir dos insectos
dão outro timbre 
aos meus pensamentos,
se fosse apenas 
por isso, esta minha
subversão!

Lisboa, 24 de Março de 2014
Carlos Vieira

domingo, 23 de março de 2014

Este cão rafeiro...

Este cão rafeiro
de vez em quando
aparece por aqui
despeja o poema e ali 
entre palavras em osso
o suor de ritmos perdidos
fareja restos de comida
parte depois para outras
paragem mais promissora.

Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira


Sinais sem tempo

Sublinho
os traços 
imperceptíveis
as palavras 
engolidas 
em seco
os gritos presos 
na garganta
o sorriso dúctil 
e efémero
a cor desgastada 
da tinta 
nos escombros
após a passagem 
do tempo 
e da intempérie
aquele esgar
de esforço inútil 
gosto 
de um fruto 
esquecido
de um amor
do qual não reza 
a história.

Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira

Passa a vida...

passa a vida 
atrás das persianas
entreabertas
bastam-lhe 
os corpos
que dali 
vislumbra
solares
satisfaz-se
na penumbra
com a ocasional
coicidência
dos olhares

Lisboa, 23 de Março de 2014

Carlos Vieira

Região demarcada da infância III



nem me lembro
da casta
só do oiro dos bagos
nos seus lábios
depois ficaram
embriagados
cercados 
pelos aromas
e sabores
que exalavam
e os consumiam 
na fecunda
convergência
do desejo
nos seus corpos
firmes e nus

(eu observava-os meio a medo meio escandalizado por detrás de uma parreira)


Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira

Região demarcada da infância II



Ias pela madrugada, pelos trilhos do vinhedo, olhavas para as videiras, a todas conhecias, desde a raíz como a ponta dos teus dedos, minuciosamente, com a atenção agrícola que te corria, desde pequeno nas veias.
Possuías um olho clínico, ancestral, de perceber o início do oídio, do mildío, ainda que fosse na página anterior da folha, o alastrar da podridão no bago, o começo mínimo de algodão do fungo, a imperceptível mudança de coloração na folha escondida, depois das últimas chuvas.
A seguir tu, grande feiticeiro, recorrias à cal, aos sulfatos e ao enxofre, compunhas as curas e passeavas feito Deus providencial, no meio de uma nuvem, pulverizando as pragas e parasitas que lhe invadiram "as vinhas da ira" e do amor, da sua vida.

Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira

sábado, 22 de março de 2014

Região demarcada da infância I



De vez 
em quando 
assalta-me 
a memória
de boné
abraçado
às cepas
do meu pai
de pé
na hábil
manobra
de criar
círculos
de vergar
as vides
atando-as
as obrigar
a uma vida
vertical.

Lisboa, 22 de Março de 2014
Carlos Vieira



Pesopluma

Pluma 
que cai da ave 
a dançar 
aos teus pés
alados
pequena nuvem 
dádiva 
dos céus
pena 
dos sonhos
em que te elevas
depois
atacas no voo 
picado 
da escrita
todas as dores
alegria 
e tristeza
que tendo 
o teu peso
tem a leveza 
do mundo.

Lisboa, 22 de Março de 2014
Carlos Vieira




sexta-feira, 21 de março de 2014

O truco...

O truco era do turco que tinha um truque um pequerno troque trocava-nos as revoltas e prunha os olhos tortos prontos falamos do acrobata que magicava pelos circus possuído de uma tremenda agilidade e dramática clarividência.


Lisboa, 21 de Março de 2014
Carlos Vieira

Frágil...

Frágil
é a ânfora
ignora o poder
da água fresca
e dos teus lábios 
sôfregos.

Lisboa, 21 de Março de 2014


Carlos Vieira

quinta-feira, 20 de março de 2014

O regresso à casa

Um silêncio 
para mim desconhecido
apodera-se dos objetos da cozinha
tu estás ausente 
e os teus sabores também
descrevo de cor 
uma lista de ingredientes
e pouco sal
as mobílias de madeira 
envernizada
adquiriram um brilho pálido das casas
abandonadas 
ainda ali poderia ainda reeencontrar 
para lá da poalha
o deslizar da volúpia dos teus dedos
por acaso o meu olhar dirige-se
para o lugar 
onde não deverias faltar
e reconheço
a indestrutível dimensão que davas
aos pequenos espaços
as cortinas deixam passar 
agora como dantes
a luz do crepúsculo
que já não te encontra desnuda
perante o meu desejo
vem acompanhada do ruído do tráfego
esse ensurdecedor rumor do sangue venoso
que corre nas ruas da grande cidade
que tu sobrevoavas
com teu olhar de adormecer a dor
e de arrasar a solidão
e fazer tremer as esquinas 
e de fazer sorrir as superfícies espelhadas
tento-te surpreender 
nos teus inconfundíveis
gestos domésticos em que te reconstituo
mas reencontro apenas o ocre do vazio
o percurso de retorno do teu eco 
no aroma familiar já distante 
dos teus beijos cálidos
a pairar apenas na única memória
que ainda torna mais afogueada a respiração
há cabides a mais no guarda-roupa
e lembro-me da bruma volúvel dos tecidos
segunda pele do teu corpo
onde rasgava noites e madrugadas
percorro as divisões 
onde encontro pedaços de ti
um gancho do cabelo do princípio dos tempos
dos nossos tempos
o rubor da cumplicidade das acácias a acenarem 
na janela poente da sala
as tuas mãos em estrela 
no cobre das torneiras em flor do lavatório
em que te observava
ávido das tuas mãos em concha
o recanto onde me cercaste
e me encostaste à parede
e fizemos amor pela última vez
derrubando todos os muros
a casa em silêncio
permanece para que não se quebre
a serenidade do teu rosto
no dia em que partiste
e as palavras que dos teus lábios
saíram mansamente 
falando de uma viagem 
que eu nunca suspeitei
não ter regresso
porque não tinha fim.

Lisboa, 20 de Março de 2014
Carlos Vieira


A relatividade do tempo



Espera sentado
o médico está em atraso
para o "caranguejo"
nem atrasa nem adianta
todos morreremos
um dia e somos uns
para os outros
na compreensão
da morte
mais tarde ou mais 
cedo vamos morrer
não há grande 
coisa a fazer
as doenças
incuráveis
podem esperar!

Lisboa, 19 de Março de 2014


Carlos Vieira

quarta-feira, 19 de março de 2014

Mais um assalto



Alto
isto é um assalto
depois abri a gaveta
dei-lhe todo o apuro do dia
chamaram-me nomes que não 
posso aqui reproduzir porque se
encontram aqui senhoras e eu olhava 
ora para os olhos da espingarda de canos
serrados ora para os olhos de sanguinário
do bandido interlocutor que se viam como bichos 
nervosos por debaixo do passa-montanhas a seguir 
pediu-me o segredo do cofre e eu disse-lhe em segredo 
que não sabia foi então que me deram uma coronhada 
na cabeça como se vê nos filmes ninguém me mandou
armar-me em herói e desde aí não me lembro de mais nada
nem sinais particulares só uma poça de sangue e o couro cabeludo
empastado um assalto é um assalto e eu fui apenas mais uma vítima
destes mundo cada vez mais violento e para o que me deu reagir calmamente
em forma de verso branco a três esqueléticos e desgraçados toxicodependentes
que conseguiram o magro pecúlio de setenta e cinco euros e na sua infinita misericórdia
me pouparam a vida de marçano.

Lisboa, 19 de Março de 2014
Carlos Vieira

Reinvenção do amor



Foi de soslaio
que te revi
e ao voltar-me
para ti
ao regressar
ao teu nome
já não estavas
agora
o meu amor
é apenas
e de novo
a sombra
o lugar
onde te perdi
amar
é pedaço
a pedaço
voltar
a ter-te
inteira
a ti e à tua
sombra
e confundir
o teu nome
com a noite
e o teu corpo
com a madrugada.

Lisboa, 19 de Março de 2014
Carlos Vieira


segunda-feira, 17 de março de 2014

poemalagunar



O pequeno lago
surgiu na circunstância
das grandes chuvas
pequeno olhar
que testemunha
os movimentos
imperceptíveis das estrelas 
cintilantes e insones
perante as bátegas
irradiando ondas circulares
o interrupto estrépito
das pequenas rãs
que crepusculares
temem o inexorável fim
do pequeno lago.

Lisboa,17 de Março de 2014

Carlos Vieira

Pede um ...

Pede um whisky de malte
bebe vários de um trago
até estar seguro
que te pode abandonar
à tua sorte.

Lisboa,17 de Março de 2014

Carlos Vieira

Fragmentos de Vénus



rende-se
ao ardil
dos teus lábios

a labareda
das tuas mãos
lambe devora o seu tronco

cresce o desejo
e no teu rosto o mistério
se desvanece

estás nua
de pé e de costas
ninguém te fica indiferente

apanha o teu cabelo
revela o perigo
que é a curva do teu pescoço

ficas em silêncio
quieta
inacessível

não a pode ver
o cabelo na face e os seus olhos
são animais na penumbra

agachada os seios tocam
as suas pernas
nunca espera por ninguém

tu és uma estátua
firme e inteira na esquina da praça
toda a  gente te aponta e te vê passar

mulher a dias e de todos os dias
com tuas espáduas
afastas as hienas que te esperam nas noites

Lisboa,17 de Março de 2014

Carlos Vieira

O poder da palavra


O que fazer?
vou alinhavando
as palavras
na folha em branco
lanço-lhe um apelo
ou acentuo-lhe
as sílabas
ou chamo-as
pelos dois nomes
como a minha mãe fazia

deixo-as
voar como os áugures
na minha mente
ai se eu as soubesse ler!
que elas me ajudem
a encontrar o caminho
da razão
daquela palavra
que abre ao mesmo tempo
no coração
uma clareira
no desassossego

a palavra
sombra breve
para um momento
de descanso
sem palavras
de traduzir o silêncio

se seguindo
palavra a palavra
pudesse voltar
onde eu um dia te perdi
e tu te calaste

se eu tivesse
um discurso
se eu soubesse
o que dizer?

Lisboa, 17 de Março de 2014

Carlos Vieira

domingo, 16 de março de 2014

Contra o silêncio

Contra o silêncio

I
Escreve
lança palavras 
e mais palavras
à terra 
ao mar
ao vento
até esqueceres 
a língua materna
e voltares a ser
um animal
a uivar
sem cessar.

II
Usa
a caneta
como um escopro
que faz soltar
lascas e chispas e lascas
das pedras caladas
até ganharem alma
solidária
e serem no mundo
esquinas 
de revolta
de vento a assobiar.

III
No labirinto 
de um país
encontras portas 
para o abismo 
e saídas 
para o nada
sem futuro
onde se já
foi feliz e tudo
agora cresces
outra vez
com medo 
solta o verbo e diz
nem que fiques
a falar
sozinho.

IV
Um mar de chumbo
e nenhum navio 
ou rastos na praia 
uma vida inteira
a contar 
grãos de areia
e a seguir
as tangentes dos voos
das gaivotas
a crocitar
naufrágios
e tempestades
canta canta sempre
nem que sejas
um humano
e que sejam apenas
cantos de sereia.

V
A casa
a trinta metros da altura 
da vida
é um ataúde
de três assoalhadas
e uma hipoteca
no sétimo andar
da solidão
e do desespero
mas sai
vais em pé 
no elevador
para debaixo do chão
resiste
não te deixes
enterrar vivo
carrega no alarme
e grita grita grita
reclama
tudo que te cabe
no coração.

VI
No céu 
nem uma nuvem 
ou astros
ou uma ave
dali agora 
não esperes nada
nem o relampejar
ou o troar
de uma ideia
ou gesto 
de misericórdia
tu és o trovão
e um raio na terra
pássaro estridente
astro de fogo
herói 
soerguendo-se
do vazio.

Lisboa, 16 de Março de 2014
Carlos Vieira





sábado, 15 de março de 2014

A caixa das mudanças

Avariou-se
a caixa de mudanças 
do meu carro
agora só
anda em primeira
que grande mudança
nas nossas vidas
pode ser a vida
sem carro
no mesmo ritmo
a pedir outras
mudanças.

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira

Hoje ele podia...

Hoje ele podia ir passear o cão à rua
talvez encontre a bela vizinha
tem um problema danado
não tem cão
nem gato.

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira



Mãos amputadas

Memória nas palmas das tuas mãos
ajeitando raios de sol
na fundição do tempo

mantendo o rumo 
e descendo à noite às aldeias
mãos de veludo de surripiar 

contorcendo-se na magia 
e na festa das palavras caídas no chão
mãos que te despertam

mãos de trazer os bichos
para casa
de reinventar a humanidade

mãos de puxar o cobertor
de um sono solto
de acalmar o sobressalto

mãos na tua face secando
a lágrima
e que acende o sorriso

mãos em concha
a inventar na solidão a ternura 
e a razão

mãos que exortam a loucura
de dedos delgados
de toque hábil

mãos de escrevinhar
sem parar
de orar

mãos no ar
e da claustrofobia
e de acreditar

mãos para morrer
de misericórdia
e para empunhar o punhal do amor

mãos que são garras e são solares 
e abertas
no corpo charruas de fogo a lavrar 

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira







fim de linha


põe a mão no carril
sente o último calor 
do amor que o abandonou

depois pousa
o ouvido e ainda escuta
o comboio que a levou

adormece extenuado
o carril serve-lhe de almofada
por fim.

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira



En garde!


o bailado
dos esgrimistas
em duelo

a arte de se eximir
às estocadas
da vida

percebe-se 
debaixo da máscara
a perspicácia no olhar

o suor e ousadia
a tenacidade
a lâmina do sabre paciente 

vai arriscar do golpe
que podendo ser
de glória lhe será fatal 

no entanto no final 
foi mais um toque apenas
um combate perdido.

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira

Mulher papoila


tu és uma única papoila
o fogo efémero
a luz que me consome

és o sangue que tece a flor
silêncio que te adormece
e que me inebria

resistes à última brisa
do nosso Inverno
ergue-te o veneno em aceso rubor 

o teu aceno romântico das causas
nas casas um grito encurralado
corre agora flor vermelha pelo prado verde

se o meu olhar é só para ti 
rainha sem reino porque danças?
por quem?

no meio da seara
balança a tua haste frágil
a tua voz rouca

destilas o ópio
a coroa de um abismo de silêncio
na tua corola 

na minha boca a pétala desfeita 
breve alusão a sexo 
uma inevitável sofreguidão 

sigo por aquele caminho rural
onde cresci e procuro
o reencontro do teu beijo traiçoeiro

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira










sexta-feira, 14 de março de 2014

Mulher puzzle

Mulher puzzle

Insinua-se
paralela e assimétrica
e pura

Observa-me
demoradamente
a olho nu

No verso
soergue-se exausta
rima

Despe-se
à ubiquidade do desejo
louco

Emerge 
e intrépida se entrega
solta

Sei-a de cor
a água da boca cresce
a sede

O olhar cega
em progressão geométrica
lenta

Penteia 
permanece o aroma nos meus dedos 
os cabelos

As palavras molhadas
desprendem-se dos seus lábios
aves de rapina

A tua nuca
pode ser o meu lugar de exílio
a omoplata

Atrevo-me
ao infinito ao palpar teus seios 
túmidos

Abraças-me
e desisto do significado das palavras
só murmúrios.

Lisboa, 14 de Março de 2014
Carlos Vieira



Na parietal...

na parietal esquerda do seu rosto 
uma pequena cicatriz
rumor feliz no afago de um beijo

Lisboa, 14 de Março de 2014 
Carlos Vieira

Revê-la...

Revê-la
no desvelo
que revela.

Lisboa, 14 de março de 2014
Carlos Vieira

O jogador



A verdade
é que não tinha 
mais tempo
na ampulheta
a areia escou-se
aquela fora 
a sua derradeira
jogada
daqui para a frente
era a doer.

Lisboa, 14 de Março de 2014
Carlos Vieira

Uma bóia...

uma bóia de esferovite na areia
salvou-se do teu corpo
uma vaga ideia

Lisboa, 14 de Março de 2014
Carlos Vieira

À espreita


Na janela
um homem de cabelo grisalho
a barba tem dias

os óculos 
quase lhe caem da cana do nariz
como se tivesse feito um intervalo na leitura
ou adormecido
-Terá morrido?

dado o dia e a hora 
deve estar reformado
retirou-se
fugiu
- Já não conta!

sem pestanejar
olhava para a rua 
como quem olha 
para a corrente de um rio
demasiado forte
onde já não pertencia
- Não adianta!

nem um aceno ou um trejeito
tem os vidros fechados 
não vá apanhar alguma pneumonia
- A partir de uma certa idade
um homem tem que se resguardar!

nesse olhar 
por vezes baço
quase espelhado
é a multidão anónima que passa
- Já não reconheço ninguém!

deve ser esse sopro ténue de vida 
e de solidão 
que o deixa amarrado
àquela cadeira de palhinha
naquela tarde 

faltar-lhe-ão as forças 
e a verdade
é que a vontade
também já parece
não ser muita

à janela
um homem de cabelo grisalho
a barba tem dias
morreu 
mal sentado
a espreitar a vida
de onde se escondeu da morte


Lisboa, 14 de Março de 2014
Carlos Vieira