quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O eterno retorno

Tenta desbravar
a vereda das memórias
e aí encontrar
translúcidas
as amoras roxas
e assim
voltar a olhar-te
a partir
da penumbra
do silvado
ávido
dos teus lábios
ocultando
o suplício dos espinhos
denunciado
pelo melro
de negro flamejante
que surpreso
alçava
voo estridente
enquanto
a sua mão pousava
no teu seio
ateando ao seu corpo
o desassossego
e ao mesmo tempo
mansa

sombra do caminho
artífice do tempo
que sem saber
feito arbusto
os acompanha.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

"Promenade" de Marc Chagall

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Li-te...

Li-te
tranquila e nua
se te chamar não respondas

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Vi-te lua...

Vi-te
lua côncava
ao sabor indecifrável das ondas

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Os cavalos também se abatem


Cavalo triste
a trote
que bebes a linha
de água,
depois 
já no limite
preso pela rédea 
ao marco geodésico
que lambe o vento
rumina
o pensamento
inútil
que o homem
só e destemido
tinha deixado
a vegetar
no cume agreste 
das montanhas
foi relatado
que esse mesmo animal
foi visto a saltar 
a cerca
contornando a encosta
para ver onde o sol
se esconde
era opinião
generalizada
que este comportamento
era fruto da solidão 
do homem
da ousadia do pensamento
que o levara
ao cume das montanhas
era agora espora
que picava
a barriga da besta
e que o mesmo
desferia a despropósito
coices
como se fosse
um cavalo louco.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2014


Carlos Vieira

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Vertigem de vértice


Vértice
de onde diverge 
a luz

onde 
o dedo meticuloso
perdeu a unha

o espanto
de um olhar insistente
tudo esquece

o silêncio inventa
um precário 
pilar de sustentação

ali próximo
a esquina da sombra
é cúmplice de alta
traição.


Lisboa, 24 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira



domingo, 23 de fevereiro de 2014

Poema para uma mulher à beira-mar

Daqui
posso vê-la,
tira os sapatos
para entrar na praia,
gosto da curvatura
desse gesto
e do silêncio
desenhado
dos seus rastos
sobre a areia.

Vai molhar
os pés,
vai ficar abraçada
de espuma
branca,
como se não
houvesse
mais ninguém
no mundo.

O cachorro
preto
vigia-a
do meio
do areal,
há sempre
um animal
para soltar
um ganido
de abandono.

Olhas
para o mar
de pequena vaga,
ao longe
um navio
sai a barra,
há sempre
algo que parte
da nossa vida,
a perder de vista,
sentes
um pouco de frio
na camisola
larga.

O teu cabelo
curto,
castanho,
molhado
da maresia
e talvez
algum 
de sal
na tua tez,
em ti
tudo
adquire
um certo
brilho.

O teu olhar
é de quem
não tem
mais nada
atrás de si,
da sua vida
ou talvez
apenas
um cão
de olhar
dócil,
tu indecisa
não avanças
mais,
a vida
não te permite,
nem coragem
da morte,
nem o cão
pode ficar sozinho.

Umas tantas
gaivotas
aparecem
para compor
o quadro,
precisamos
sempre
de asas,
de muitas
asas.

Nos olhos
inquietos
do cão
tão humanos,
a tua silhueta
pregada
contra
a cruz 
de chumbo
do céu,
estamos
em Fevereiro,
talvez
vá chover.

Os braços dela
agora
estão cruzados,
levantou-se
uma brisa,
ela que era
uma mulher
de armas,
agora
ali estava
sem saber
que fazer,
ela não sabe
o que era
estar à espera.

De onde
estou
nem me posso
aproximar,
nem consigo
ler,
no entanto,
tu
foste sempre
um livro aberto.

Para interpretar
aquele silêncio,
teria
que lhe ver
o movimento
quase imperceptível
dos lábios
e a sua relação
íntima
com o sobrolho,
e na bissectriz
do olhar
o seu ponto
de fuga,
pode não ser fácil,
tentar
compreender
aquela mulher.

Na praia,
uma mulher
de manhã
cedo
pode ter
sempre
uma segunda
leitura,
para lá
da solidão
mais que óbvia,
da eventual
noite
mal dormida,
pode ser apenas
mais um luto
de despedida,
não,
a esta hora,
não se vai
suicidar
é estatisticamente
improvável.

O cão guarda
os sapatos
e tudo
o que os mesmos
representam,
por vezes
cheira-os
e volta a fitar
a sua dona,
não gostava
daqueles
momentos
de inquietante
irracionalidade,
tentava
em vão,
encontrar
explicação
para aquela
demora.

Talvez venha
expulsar
alguns
demónios,
o mar
era agora
uma espécie
de pia baptismal,
de acalmia
de catedral,
vinha ali
confessar
os seus pecados.

Ou talvez
precise
apenas
daquele
aroma
a cercar-lhe
a alma,
a invadir-lhe
o coração,
memória
de há tanto
tempo.

Talvez
esta mulher
claramente
precise,
do céu e mar
para fazer
contas à vida,
é uma mulher
de meia idade,
já teve filhos
e divórcio
recente,
o tempo
passa
a correr.

Finalmente
olhou
para terra,
para o animal
que lhe acenou
com o olhar,
ela esboçou
aquele sorriso
de ocasião,
que qualquer
ser vivo
reconhece.

O céu
estava
na iminência
de desabar.

Há mulheres
assim, teimosas
que pretendem
ver na paisagem
sinais de si,
para além
da evidência,
outras, 
que misteriosas,
vêem muito mais,
do que aquilo
que a natureza
mostra.

Outras,
que gostam
de se impregnar
dos elementos
e dessa forma,
se tornam
temíveis forças
da natureza.

Esta, 
talvez
seja um
desses seres
que estabelecem
diálogo
com céu
e mar,
árbitros
de singulares
e heróicas
contendas.

No entanto,
pareceu-me
notar
uma pequena
convulsão,
talvez
esteja a chorar,
desabafe
com o desconhecido,
o facto
de ser tão firme.

Pode ter sido
abandonada,
tenha recebido
a notícia
de um mau diagnóstico,
saudades
de um filho distante
ou da sua distância.

Talvez,
precise
da cumplicidade
do mar,
da sua força,
do seu poder
persuasivo.

Fixa
os olhos
na linha do horizonte,
para se convencer
que naquela
direcção,
o nada existe.

Esta nossa 
tendência
trágico marítima
e se não for
a tristeza
que ali a deixa
transida,
e se for
o calor que guarda
do amante,
que sempre
tem de sair
mais cedo,
a coberto 
da névoa.

E se for apenas
o querer
ver o mar,
como se tivesse
sede,
e se a solidão
for daquela boa
como o colesterol
que nos dá
um novo fôlego
e nos faz renascer.

E se precisarmos
de mar,
de nos sentirmos
ilhas
e de areia nos pés,
para podermos
regressar
ao melhor de nós.

Para um cão
isto é tudo
compreensível,
o problema
é a fome,
para ele
esta não é a hora
da metafísica.

A mulher veio
agora sentar-se
junto dele,
na areia molhada,
faz-lhe
uma pequena
festa,
ele lambe-lhe
a mão,
o estranho
sabor
que lhe saciou
a fome.

Volta olhar
para o mar,
naquela
obsessão
que esta
madrugada
a assaltou,
na vida
há momentos
que estamos cegos,
porque
só temos olhos
para o azul
de um mar
interior.

Jurava
que deve estar
muito tempo,
de olhos
fechados
a ouvir
a ondulação
ou pensamentos
que a deixam
e partem em direção
ao oceano.

Ela sente
uma enorme
necessidade
de os deixar partir,
de regressar 
à emoção
de si.

A chuva ameaça,
ela parece
não se importar,
talvez
espere
um banho
de água doce,
espere
saciar-se,
banhar-se
na pureza
da benção
que cai do céu.

Não existe
mais ninguém
na praia,
as esplanadas
estão fechadas,
as gaivotas
perplexas.

Esta mulher
veio trazer
uma lacuna
que havia
nesta praia,
um poema
salgado
deitado
sobre a duna.

O cão agora
começou
a ladrar,
antes
que chegue
mais gente,
vou deixá-los
aqui
sentados
numa estrofe
para poder
a eles regressar.

Esta é
a mulher
desconhecida,
onde encontra
todas 
e cada uma
das mulheres
que conheceu,
neste cão
que as acompanha
por todo o lado,
nesta praia
que entre paredes
cresce,
no meio do betão
e das manhãs
de insónias.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira