sábado, 31 de maio de 2014

Habeas Corpus



O meu cárcere
é o meu corpo
e a minha falta de ar

é ao tomar banho
no poleiro de uma flutuante
um pássaro a cantar

estou preso a mim 
e se de ti me encanto
mais confinado me sinto

no peito labaredas
e nas paredes do estômago 
as borboletas de espanto

e se num golpe 
de asa e de inquietação
acima dos muros me levanto

logo vem a gravidade
da vida pôr termo à evasão 
e me puxar para o meu canto

e ao meu ouvido
me lembrar o meu lugar
a minha idade

a necessidade
de manter o que resta
do corpo que foi festa

a esperança e o sonho de vida
o mais tarde possível
me libertar do corpo prisão.

Lisboa, 31 de Maio de 2014
Carlos Vieira




quarta-feira, 28 de maio de 2014

Jardim de Inverno II



As plumas
macias
do seu chapéu
sobre o sobrolho
eram fustigadas
pelo vento
agreste
que se tinha
levantado.

A serenidade

dura 
do seu rosto
passou do alabastro
ao metal
irreconhecível
forjado
no fogo da paixão
de lágrimas
amargas
e da loucura.

Tudo aquilo

poderia
ser uma cabala
mulher felina
apanhada
na sua própria
armadilha.

Quem conheceu

aquela mulher
a sua bondade
constava
ser impossível
que pudesse
sobreviver
impassível
naquele gelo.

A eloquência

da sua carícia
a sua presença
etérea
evoca o íman 
efémero do olhar.
O meu puro 
pudor
diante da sua tez
de ouropel
húmida
do relento
as minhas mãos
a passar a toalha
com que a havia secado
à volta
da tua cintura
tão devagar
beijo a beijo
poro a poro.

Um pequeno lapso

deixa a dançar
no meu espírito
o pêndulo
da sua ida e vinda
perante
os meus dilemas
na paisagem sépia
do regresso
ao beijar
indolente
à sugestão
do teu perfume
em recônditas
passagens.


Lisboa, 28 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Hoje ao despertar



Hoje ao despertar
já estava morto
precisamente
agora que ia
começar 
uma nova vida
e que sabia
o que fazer.

Lisboa, 28 de Maio de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Educação musical

tive um padre
nas aulas de solfejo
e a primeira namorada

ali percebi nos teus olhos
a trajectória 
das cascas de laranja
e a relevância da música

no sobe e desce
das pautas
aspirava um primeiro beijo

dos teus lábios
soltava-se
um aroma a tangerina

no piano
as teclas confundi-as
com os gomos

aquelas
na sua transcendência
de motivos
eram nas tuas mãos
em concha

no prolongamento da escuridão
do anfiteatro
estrelas cintilantes
a pairar

teus dedos 
finos e atrevidos
no abismo surpreendido
dos meus bolsos

Lisboa, 26 de Maio de 2014
Carlos Vieira


                                                        The Music Lesson de Vermeer

estrangeira



apenas conheci
a luminosidade
do teu corpo nu
depois 
que atravessaste
a cortina 
de água

o teu rosto
sonhado
ao tocar
no outro lado do espelho
e o meu dedo 
à volta do infinito
da chávena
de café

na húmida
vertigem do teu olhar
cega-te
a altura do sol
tu eras para mim
apenas a contraluz
ou quando muito
uma miragem

foste sempre
a última fronteira
e no abraço
em que presumi
que te entregavas
apenas me davas
as boas vindas
em tudo resto
orgulhosamente só
inabalável estrangeira

Carlos Vieira



O voo da perdiz



Estávamos em Agosto
do meio das videiras
a perdiz levantou voo
ruidosamente
era manifesto
estar embriagada.

O caçador
fora do período
legalmente permitido
assentou a coronha
da espingarda de dois canos
e o voo da perdiz
tremeu no ponto de mira.

Entre uns e outros
o dono da vinha
ia rente à madrugada
e no voo baixo da perdiz
percebia o seu peso
a maturidade da uva
e a qualidade do vinho.

Perdiz e caçador
e dono da vinha
cada um cambaleando
já tiveram um momento
em que se elevaram
brevemente
ao cimo da terra
ignoram-se
em pontos de vistas
e ângulos de visão.

Lisboa, 26 de Maio de 2014

Carlos Vieira

domingo, 25 de maio de 2014

zona de perigo


a morte
espreita
a cada esquina
um pequeno
descuido
e morre-se
estar de olhos
bem abertos
é matar
ou morrer
não pestanejar
no momento
de atirar
quem poupa
o inimigo
às mãos 
lhe morre
devemos
ser sagazes
não descurar
o mínimo sinal
aqui impera
a lei da selva
neste lugar
não existe
o cinzento
quando
muito 
o cor de rosa
pálido
e uma mancha
vermelha
de sangue
que alastra
silenciosa
vencendo
o amor
afogando
a poesia

Lisboa, 24 de Maio de 2014
Carlos Vieira



Marquise



gosto desse teatro
de marionetas
que são as marquises
de rostos
infelizes
que entre cortinas
vislumbro
sombras diáfanas
por trás
dos vitrais
a leveza dos corpos
nas roupas
penduradas 
nos estendais

Lisboa, 24 de Maio de 2014
Carlos Vieira



sábado, 24 de maio de 2014

na falta de esquadria



na falta de esquadria
a luz criava 
uma espécie 
de trapézio
oblongo
na confluência
do betão
separando
o presente
do passado
com uma trave
de castanho
pendurado
um pedaço
de mar 
a devorar
uma laranja
imaginária

Lisboa, 24 de Maio de 2014
Carlos Vieira





sexta-feira, 23 de maio de 2014

Amor ficção e realidade



Dá-me muitas vezes
este frenesim
de estrangular a realidade
e deixá-la cambalear
em estertor até ao fim
e depois ao vê-la
revirar os olhos
beijá-la com despudor
e com compaixão
ressuscitá-la
só assim será então
o amor nos meus braços
a libertação
da vida e da morte
mais do que faz de conta
que te amo
mais do que performance
e avaliação final
ao preço de saldo
e em liquidação total
este é um amor
de todas as ondas
de toda a palavra
e de todo o lugar
de onde te arrasto
e afinal
apenas batida realidade
da maresia e do sal
corpo que abraça
a espuma e o vazio
 no meio da praia
amor fácil
de contentar
e que caminhando
se apaga
à beira-mar.

Lisboa, 23 de Maio de 2014

Carlos Vieira



O meu Alqueva



Contemplo
em antecipação
este meu pequeno
projeto de regadio
o fascínio
de levar a passear
a água
pela horta sôfrega
ela entrega-se
ao seu percurso
de contornar
os caules das couves
e penumbras
de clorofila
de inundar
os canteiros
de fazer
tartamudear
as borboletas
que levantam voo
aflitas
e fazem sussurrar
na pequena corrente
as folhas secas
que leva consigo
de um tempo e lugar
onde os insetos
inventaram a filigrana
e agora navegam
pelo meio do pomar
feitas barcos
onde pequenos bichos
periclitantes
sobrevivem
viajantes
neste pequeno dilúvio
a hora marcada
da rega
e dos território da sede
em dias
de um Verão
que virá
de encontro
a este nosso Alqueva
de irrigar
a imaginação
sinto-me
de súbito
com os pés molhados
e de repente
a corrente da poesia
também me levou
a mim.

Lisboa, 23 de Maio de 2014
Carlos Vieira



quinta-feira, 22 de maio de 2014

Portugal, terra de descobridores



Aqui estamos
na periferia
desta já gasta
Europa
madrasta
que se dizia
solidária
de vista larga
percebemos
de gustação
amarga
de vista grossa
terra
que nos diziam
da salvação
que para nós
tem sido
quase sempre
lugar de exílio
de emigração
só agora que
aqui regressados
já tarde
percebemos
que sendo esta
a Europa
a que rumámos
nunca foi
esta a que sonhámos
e muito embora
caídos na armadilha
que nos montaram
querem ainda
fazer-nos crer
que tudo foi
erro nosso
da nossa pequenez
do nosso ser
vítimas
do “amor ardente”
de sermos sempre
entrega cega
personificação
a um tempo da preguiça
e a outro da ambição
eis-nos aqui chegados
e ainda cansados
e já desejamos
partir de novo
para outra terra
que não faça de nós
os novos escravos
uma nova espécie
de sem terra
nem continente
como dizia o poeta
“cidadãos do mundo”
de outro mundo
de outra Europa.

Lisboa, 22 de Maio de 2014

Carlos Vieira


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Casa em ruínas

Na ruína, de paredes eram meia dúzia, resistem ainda duas janelas, dois olhos vazos que nos expõem o interior da casa. Destelhada, continuam de pé uma daquelas portas em duas folhas e com bandeira, de tinta ressequida, de um verde velho a descascar.

As maçanetas ainda ninguém as levou, pode algum desgraçado, procurar abrigo, bater à porta, ela dará resposta, escutando-se do lado de dentro um vento familiar, sem se aperceber que se encontrava ouvir a si mesmo, numa noite de ventos uivantes, depois pode ali repousar e descansar "os ossos", a céu quase aberto.

Percorrida a habitação apenas uma arca de pinho, a apodrecer a um canto, daquelas antigas, onde se guardava a ervilha, o feijão e outros legumes.

Cresciam uns tufos de ervas, aqui e ali esventrando o soalho. Das paredes de caliço esbranquiçado, trechos de ferrugem lacrimosa, escorriam de cima das parede de adobe ou das frestas que foram fazendo a sua assinatura.

Percebia-se a lareira, não restava, um aroma da comida ali cozinhada, nem um ronronar de histórias para adormecer ou para nos manter acordados, uma ladainha de preces, memórias de fomes e farturas.

Ali estava um despojo de navio vagamente familiar, no baldio abandonado, a vaguear nas suas quatro assoalhadas, desaparecido na guerra ou num colapso do terramoto.

Eis pois, perante vós, a imagem daquilo que resta de um lar que se desfez, da desertificação de um país que o fluxo migratório e o magnetismo das cidades acentuou. 

Estas são algumas das explicações que temos mais à mão, para aquela ruína, tão válidas como outras quaisquer. 

Porém, reconstituir os lugares, esses anónimos territórios, estes ninhos de amor perdidos no tempo, ainda nos aquece, nestes dias frios, do fim de Maio.

Lisboa, 21 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Poema da minha desumanidade



Isto aqui é o mundo
e aquele ali sou eu
tem sido sempre assim
mais perto do mundo
do que estou de mim
muito embora longe
sinto-o um filho meu
um universo que criei
qual o princípio e o fim?
reconhecer à distância
aquilo que me pertence
e aquilo que deixarei?
na minha ausência
serão apenas vestígios
do silêncio e do caos
efémeros sinais da idade
a caminho do refúgio
onde recupero folgo
para que o mundo
que por várias razões
tantas vezes perdi
regresse ao corpo
da minha humanidade.

Lisboa, 21 de Maio de 2014
Carlos Vieira

domingo, 18 de maio de 2014

Cantorio

Vou até junto
da margem
e pergunto, 
- onde vais rio
que eu canto?
este não 
me responde,
considerando
talvez,
na sua sábia
longevidade
e eloquência
da corrente
que um pouco 
mais de água
e menos vinho
e sol na cabeça,
aumentariam
a minha 
clarividência!

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Biombos, lanternas e papagaios



Lanternas chinesas
no arraial
pássaros de origami
ao sabor
da brisa primaveril
um bailado hexagonal
festa de poemas 
de vida efémera
onde ardem
em pavios
por uma noite
almas censuradas 
uma chama interior
papagaios 
e balões de papel
que sonham
despenhar-se
das estrelas e do céu
amarrados
a versos e estribilhos
por um cordel
à espera 
que o fogo 
daí a instantes
os liberte 
deste espartilho
das sombras 
bruxuleantes
desta mão invisível
que nos tutela.

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira





Lanterna II

lanterna
que vai á frente
não vai atrás

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Amor livre



O teu busto refulge
emerge do mistério da seda
tudo é em ti cintilação fria
estrela longínqua
dos punhos de renda
desabrocham em concha 
as tuas mãos macias
de acalmarem a tempestade
e nos teus lábios 
que foram de fogo
surgem também uma a uma
as palavras do gelo
cauterizando o excesso
da emoção
depois a coberto 
do tecido da noite diáfana
fui abrir a gaiola dourada
que para ti 
tinha construído 
de tanto amar te perdi
e sem a querer
deste alforria 
ao meu coração.

Lisboa, 18 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Ode à precariedade

Tenho
uma especial 
simpatia
pelo efémero
que se vislumbra
num breve pestanejar
no imperceptível
espreguiçar
das asas dos insectos
no rumor
da água que sobe
da raíz até ao caule
no toque da pele
nos contornos da noite
de insónia
nas inúmeras
pequenas estupefações
de abertura
das portas e janelas
no perfume
de tinta e das palavras
permanentes
nas cartas antigas
guardadas 
nas caixas dos sapatos
da saudade
na sinfonia das ondas
numa noite sem estrelas
e pés descalços no areal
de lembrar-se de um amor
se uma mão pousa
no ombro
desconhecendo
que se tratava
de uma despedida
definitiva
daquele vestido 
de um único Verão
que na memória
durante tantos anos 
se colou ao seu corpo
da primeira vez 
que dançou contigo
um slow
sem se dirigirem
uma palavra
e seus corpos possuídos
sem se tocar
naquela noite
dizerem quase tudo
dos cabelos ao vento
do calor dos teus seios 
nas suas costas
e deitados 
eles e a mota
na curva fechada
cercados do perfume da resina 
e dos pinheiros
a caminho de S. Pedro Moel
vestígios desse inútil privilégio 
de poder subir as árvores de calções
e comer todas as cerejas
e as tangerinas
perante o olhar
condescendente dos avôs
da alegria da aventura dos rios
entre canaviais
sempre a correr
sem tempo e sem sossego
e sobretudo poder amar 
o subtil momento das aves
dos seus cantos e assombrações
das armadilhas e dos ninhos
e dos bebedouros
na sua imperfeita e desajeitada
dedicação à poesia
impaciente ornitologia
das almas.

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira













sábado, 17 de maio de 2014

Na sala de espera



Podem sentar-se
que a espera
vai ser prolongada
esperem
o mais confortável
possível
pela eternidade
como se tivessem
morrido
sem dar por isso
a paciência
é algo
que nunca é demais
exercitar
libertando-nos 
do melodramático
peso da morte
sentem-se
descansem 
em paz.

Lisboa, 17 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Do beiral...

do beiral
partiu em voo as andorinhas
que propagaram a noite sem lua


Lisboa, 17 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Vistoria



mergulho e examino
os pilares do conhecimento
da sua resistência
soltam-se borbulhas
tenho pouco tempo
para deixar
o abismo azul
e voltar à superfície
e me libertar
da dúvida

Lisboa, 17 de Maii de 2014
Carlos Vieira

sexta-feira, 16 de maio de 2014

barco de papel



quero um poema
que abarque
o teu sorriso puro 
de alumiar
o fim da nossa primeira noite
e que ao mesmo tempo
tenha um pé
na madrugada de um futuro
naquilo
que pensávamos
poderia ser sorridente
e do alto da gávea 
de um verso 
pudesse avistar
a poente 
o regresso da tua silhueta
e na náusea da espera
poderá pousar
a bordo da poesia
a ave 
de uma secreta alegria
com que me ensinaste
a vencer a grande e a pequena
tempestade

Lisboa, 16 de Maio de 2014


Carlos Vieira

Pólens



vento 
do fim de Maio
traz ao teu frágil pulmão
um corropio de papoilas
o miar dos gatos
alergias
coisa simples

em Maio 
teu pulmão
e o vento meu irmão
a brincar
com a frágil papoila
agora tosse 
solta-se a espectoração
pequenas complicações

foi em Maio
o teu pulmão na berma
da estrada dura
a asma 
depois da gargalhada
a partitura da tosse
início da crise
incidentes de menor
importância

em Maio
por causa do pólen
e das aves
a poesia ganha cor
perde pulmão
até as papoilas
erguem gritos efémeros
simulacros de dor
onde transparece o ópio 
para grandes males
grandes remédios
e efeitos secundários

Lisboa, 16 de Maio de 2014
Carlos Vieira

tempo de chumbo



dia estranho
um calor abafado
que algumas bátegas
de água vieram suavizar
a passarada canta ao desafio
eu com esta disposição de peixe
a querer sombra de águas profundas
ou fora de água de olhos esbugalhados
dilema de mãos a abanar e de encruzilhada
simplesmente azamboado da cada vez maior
dificuldade em recuperar de noite mais agitada
ou deste tempo cada vez mais difícil e conturbado

Lisboa, 16 de Maio de 2014
Carlos Vieira



                                                     Foto retirada do Los Angeles Times

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Meias de vidro

Lembro-me
como se fosse hoje
usavas meias de vidro
até ao fim das tuas pernas
inquebráveis e longas 
muito mais 
do que as noites
depois olhava-te 
tão fixamente
como nos atraem 
os astros
e os abismos
por dentro de nós
amarinham
todos os demónios
e eu que me tinha
em tão grande conta
tão hábil e dotado
tentava desevencilhar-me
de ser estrangulado
pelo poder absoluto
dos cristais
que faiscavam
das tuas meias de vidro.


Lisboa, 13 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Tinha uma fisga...

tinha uma fisga 
de elásticos franceses
um luxo
comparadas com aquelas
feitas de câmaras de ar
de bicicleta

Lisboa, 13 de Maio de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 13 de maio de 2014

Sei de um ninho!

- Sei de um ninho!
Tempos em que saber de um ninho
era um segredo maior
só meu e do passarinho.

Lisboa, 13 de Maio de 2014
Carlos Vieira

paredes meias



entre quatro paredes
um piano a duas mãos
o ranger das portas
e de janelas
o mistério dos ruídos
no sótão
a subtil alteração da brisa
no estendal
a subtileza do eco dos teus pés
em peúgas sobre o soalho
entre quatro paredes
depois de oito dias a sós
agonias de acordeão
pela mobília a memória 
do estremecimento da tua voz
o ritmo febril da percussão
acompanhado de especiarias
nos alumínios da cozinha
entre quatro paredes
de betão
o vidro duplo
o aproveitamento energético
a dança das cadeiras
cada coisa em seu lugar
eu sou duro de ouvido
"- Concede-me a honra desta dança!
- Eu não sei dançar!"
só às paredes confesso
minha casa da música
meu silêncio
minha respiração

Lisboa, 13 de Maio de 2014
Carlos Vieira

No meio de nenhures...

No meio de nenhures
alguém
se encontra
algures

Lisboa, 13 de Maio de 2014

Carlos Vieira

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Tanto abandono



Uma parede de pedra e musgo
e líquenes
e as raízes a que ficou preso
o teu destroçado coração
ali existem os pedaços de caixilhos 
de uma janela
reflexos de olhos de bestas
no escuro
e lâminas de vidros quebrados
e a pairar 
a memória do amor 
inadiável
as teias 
são agora armadilhas de orvalho
para as aranhas
e tuas mãos a multiplicarem
as carícias
e os meus lábios 
a aplacarem o desejo
nas ruínas da casa das alfaias
habitadas por lagartixas
e o cheiro intenso dos adubos
que sobraram da última
lavra
posso lembrar-me com exactidão
o beco sem saída
para a transação 
dos nossos corpos nus
por um só corpo
e da premência das palavras
indecentes
fustigando a pele
no combate à inércia
à indolência
décadas atrás 
antes da política agrícola comum
e do nosso abandono
e de termos reconhecido
que papel competia a cada um.

Lisboa, 12 de Maio de 2014
Carlos Vieira







Tragédia rural


tragédia rural

mais um dia do louco alvoroçado no campo de trigo, a espantar os pardais, a destruir as espigas, o louco não pensa na colheita, nem no pão, nem no tiro da espingarda que atroou a serenidade rural, os cães de caça foram a correr e regressaram a ganir de cauda escondida, para junto do outro louco que sobreviveu.

Lisboa, 12 de Maio de 2014
Carlos Vieira

domingo, 11 de maio de 2014

Estava sobre a muralha...

estava sobre a muralha 
observa o espelho de água
e ouve-a que se despenha 
no açude
a harmonia e a queda
ele levou consigo
a afiada lâmina da corrente
e das pedras

Lisboa, 11 de Maio de 2014

Carlos Vieira

As palavras cedem...

as palavras cedem
ao silêncio
e este à sede

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira

No céu...

no céu
uma única nuvem
a ave de rapina

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira

O peregrino segue...

o peregrino
segue 
pelo caminho de ferro
desactivado
pousa o ouvido
no carril enferrujado
e ouve-se 
a sua alma
uma locomotiva
a latejar

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira



Mãe terra


Espreito 
o colo eterno 
do enternecer
no fecundo peito
de um ser materno
na usura do entardecer
do mundo.

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira



Uma mulher na paragem do tempo


Vi-te
ontem,
porém tu
não me viste,
estavas
na paragem
do autocarro,
lias um livro.

Ali estavas,
serena,
esquecida
de mim,
página
virada
da tua vida.

Tive para parar,
te oferecer
boleia
mas não sabia
para onde ías,
nem em que capítulo
ficámos.

Foi melhor
assim
tu arrumada
a um canto,
livro que amei ler
que teve
o seu tempo
o seu encanto.

E agora
eras mais
uma miragem,
apenas
um estremecimento,
na paragem
do autocarro.

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira

                                                 "Woman at the bus stop" Jörg Zenker

Furto por descuido no decurso de um sonho

Um café na esquina
apenas 
um chapéu de sol
aberto na esplanada
sobre as tuas pernas 
longas e cruzadas
um cigarro aflorava-te
entre os dedos
sobrevoou-te
um pensamento
sorrias para ti mesmo
era perceptível
uma luminosidade
húmida no olhar
e a discreta elegância
do vestido creme
a cabeça levemente
deitada para trás
infelizmente
foi de ângulo
insuficiente
para atentar
no rapaz de t-shirt
e calças de ganga
que passou
subrepticiamente
junto a ela
e se apoderou
da sua carteira
e foge muito depressa 
do teu sonho
antes que dês
por isso
tu que até tinhas 
reparado nele
no seu olhar penetrante
na atração
do seu ar rebelde
embora pouco cuidado
agora o teu problema 
deixou de ser 
a solidão
é o telemóvel
as chaves
os documentos
cancelar o cartão 
de crédito
e como vais pagar
o café
essas distrações
coisas da vida
e do amor 
pagam-se caro
e agora
tem de ficar 
para mais tarde.

Lisboa, 10 de Maio de 2014

Carlos Vieira

O peregrino



I

Descanso
depois do medo
e antes da coragem
sento-me no penedo
a meio da encosta
da ilusão e da viagem
o meu olhar
divide o teritório do vale
em paz com o falcão.

II

Prossigo
a caminhada
em direção
ao desfiladeiro
a única cilada
que receio
tem a raiz
na imaginação
o meu maior
inimigo
dorme comigo.

III

Agora
este rio
me acompanha
conversamos
seguem-nos
os peixes
canta o rouxinol
e reflexos
de salgueiro
ele sabe para onde vai
eu não sei
para onde vou
e a todos levo
comigo.

IV

Vou ficando
mais disponível
para os aromas
mais subtis
e para as aves
mais breves
para a emoção
dos atalhos
poderei chamar
peregrinação
a é esta geometria
mínima
de folhas
e de sombras.

V

Doem-me os pés
o corpo todo
tenho sono
e a fome
assalta-me
em silêncio
venci o cume
a chuva e o vento
comi o pó
e o desafio
é para lá
do momento
é ser só
e ser o caminho
ao mesmo tempo
cair adormecido
embalado
pelo conhecimento.

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira

"The Pilgrim above Mist" de Caspar David Friedrich (1744-1840)

sábado, 10 de maio de 2014

Madrigal da ausência



quanto mais
me afasto
do ruído
do teu corpo nu
mais oiço 
no rumor
do sangue
a tua voz
o teu nome

também
percorro
o istmo
do olhar
que calaste

que interessa
se o vagar
do gesto
pode ser
a brisa
que agora
me acaricia

é certo
que se pudesse
beijar
teus lábios
poderia estancar
o cinzel
de fogo eterno
que morde
por debaixo
da pele

e cada
um de nós
apátridas
desses
astros de carne
onde a alegria
se demora
por si só
se extinguiria

Lisboa10 de Maio de 2014
Carlos Vieira



quinta-feira, 8 de maio de 2014

As meninas de Chibok



as meninas 
de uma escola católica
de Chibok
foram sequestradas
quase há um mês
este é o estádio
da desumanidade
a que chegámos

as meninas de qualquer
Chibok
de hoje ou de ontem
como as de qualquer religião 
vão ser vendidas
escravas para casar
ou não
estas serão as mulheres
que nunca foram meninas

as meninas de Chibok
eram 276 
e levaram a escola inteira
para aprenderem 
a mais dura lição 
da vida e da morte

as meninas de Chibok
algures em África
223 meninas ainda
respiram?
escutamos o murmúrio
das suas vozes?
os seus olhos
amedrontados 
esperam
pela mãos dos homens
e de Deus
e que delas se condoam
os seus algozes

as meninas de Chibok
esperam que nós
os que tiveram 
a sorte de não terem vida 
com sabor a morte
façam tudo
que lhe faça devolver
um pequeno
brilho no olhar

as meninas de Chibok
são também
as nossas meninas
que há tantos dias
não dormem 
lá em casa
que não nos fazem 
sorrir ou sonhar
meninas 
que muitos luas depois
gostaríamos 
que fossem mulheres

Lisboa, 8 de Maio de 2014
Carlos Vieira




quarta-feira, 7 de maio de 2014

Fui à peixaria...

Fui à peixaria
saí de lá a ouvir
o murmúrio das ondas
a desmaiar no areal 
impregnado
de prata e sal
e nas guelras
mais um grito
sufocado.

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

No mercado...

no mercado
de cornos no ar
caracóis aos montes
sonham as hastes
das ervas
pelos olivais
pergunto-me
se se alguma vez
se terão apercebido
do perfume
dos oregãos

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Foi pela charneca...

foi pela charneca
e saltou para o outro
lado do mundo
do muro
colheu
pequenos molhos
de espargos selvagens
e fechou os olhos
definitivamente

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Memória do aroma...

memória do aroma
da salsa e dos coentros
esse princípio da eternidade
nas tuas mãos

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

os pratos da balança

os pratos da balança
primeiro pesam o tempo
entram depois os frutos 
na dança perante 
a inquietação 
exacerbada 
do ponteiro

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Um lençol de frescas

Um lençol de frescas 
folhas verdes
e de corações 
de couve flor,
sob a bancada 
as suas mão brancas,
a pedirem
uma couve portuguesa.

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Fui ao mercado

Fui ao mercado
os olhos da vendedora
eram pérolas,
comprei o robalo.

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

1kg de cereja vermelha

1 kg de cereja vermelha
reluzente
à espera de ser o sol 
do crepúsculo 
entre os teus dentes

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Carlos Vieira

terça-feira, 6 de maio de 2014

Geometria analítica



Agora já sei 
a lua é um rectângulo
pois surgiu
nesta janela
de oportunidade
da poesia

a terra é curiosamente
redonda

tu és um triângulo 
equilátero
tão cheia de emoção
e de equilíbrios instáveis

todo o conhecimento
geométrico
vai acabar um dia
num paralelipípedo
de noite cerrada

para quase todos
uma tragicomédia
almofadado
de madeira
de pinho
para outros
exótica

ali
lentamente
se irão desfazendo
inelutáveis
as dúvidas
ou as diferenças

desvanecer-se-á
a opinião científica
ou certezas matemáticas
e o cálculo de probabilidade
de todas as arestas
vai ceder
perante a voracidade do fogo
e a veemência da terra.

Lisboa, 6 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Preâmbulo



Aquilo 
que aqui vos trago
é algo que vagamente
se confunde com poesia
esse bicho de vida efémera
fruta do chão
objecto pueril de reflexão
sinal perdido
de mundo interior
e estado de espírito
o outro lado da lua
do oculto de um amor
que é justo
é aquilo 
que não se diz
mas é claramente visto
inflexão da palavra
incompleta
e da outra
que não é dita
por causa da timidez
poesia maldita
envolta
numa estranha
solidão
e é tanta outra
de tempos heróica
e noutros proscrita
é vestígio do ténue aroma
de corpo da escrita
meu Deus
é um corpo
a que o poeta dá alma
e acredita.

Lisboa, 6 de Maio de 2014
Carlos Vieira



Raios parta

Raios parta
este pinheiro alpino!
todos os dias da semana
em eterno adeus
à minha janela,
vai! vai embora de vez!
cumpre o teu destino,
deixa-me a aqui
entregue,
a estes papéis e interstícios
administrativos
de bocejar
ofícios e de leis.

Lisboa, 6 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Aqui estamos...

Aqui estamos nestas dias
de “fast food”
de solidão sem dinheiro
de escapadelas
evasão em “low cost”
a aguentar altos e baixos
do coração
com “passemaker”
e utopia adiada.

Lisboa, 6 de Maio de 2014
Carlos Vieira


um único pássaro

um único pássaro
faz-se ouvir na árvore
não sei se o canto
é de amor ou de fome
de alerta ou de espanto
não o vejo
sei que pousou
na pequena pauta
e gaiola de um pensamento
tenho agora solitário
um pássaro
aos saltos entre a angústia
e o encantamento

Lisboa, 6 de Maio de 2014
Carlos Vieira




segunda-feira, 5 de maio de 2014

Meticulosa



meticulosa
a escavação prossegue
uma sede de ânfora
toda a cerâmica fragilidade
em que se transformaram
as máscaras 
do tempo

Lisboa, 5 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Do dia de hoje...

do dia de hoje
ficou-me
aquela flauta
feita do remoinho
de vento
intermitente
a soprar
numa fresta
da janela

Lisboa, 5 de Maio de 2014


Carlos Vieira

domingo, 4 de maio de 2014

Poema de amar desesperadamente



o nu
aceso
integral

de poro 
em poro sem paladar
corre a lágrima

para o teu delta
uma lâmina
de sal

fenda
à flor da pele
ferida vibrante

contorno
o ombro
e todo o desencontro

o teu umbigo
essa flor
destroçada

no pescoço
ao alto descansa um barco
encalhado num beijo

a língua 
no cume dos mamilos
onde um dia vai secar o leite

no baixo ventre
solta-se o teu delírio
e eu sou mais que a morte a demência

estás deitada
tuas pernas levantadas
e nas solas dos teus pés assolam vertigens

viras-te
e o pulsar do teu peito 
pede-me veemente uma ponte para o mundo

afinal após o desespero e depois da tempestade 
após os nossos corpos saciados
tudo se tornará na terra irrepetível e intemporal

Lisboa, 4 de Maio de 2014

Carlos Vieira