Lembro-me do meu dia
se medir
pelo tempo que ía levar
o elevador da Bica a chegar
do Bairro Alto ao Cais do Sodré
e daquele bailado
das mãos acentuando os vincos
nos envelopes do futuro
do pregão do homem das cautelas
em contramão
com a sombra esquálida
de um cão vadio
de permeio o brilho metálico
do papel couchée
e das palavras entrecortadas
no esgar electrónico
da guilhotina
soube do cheiro a cola
e à tinta fresca
nas resmas de estampados
recém chegados da tipografia
da antecedência do papel
dos presentes
e dos ausentes
lembro-me das mulheres
com o tacão alto preso
na calçada portuguesa
e daquelas de coração solto
e das sardinhas assadas
na tasca em frente
e da sua prata escamada
por mangas de alpaca
do baton vermelho
a esborratar a burocracia
volto ao café Oríon
no Calhariz
com seu séquito de bancários
preocupados
com o fundo de caixa
e um olho
nos sapatos de verniz
e a taxa de esforço
e de câmbio
ou o crédito mal-parado
e os amarfanhados alfarrabistas
desconfiados num recôndito
a olharem-nos da penumbra
por cima dos seus óculos redondos
de aros de tartaruga
acariciando as lombadas de carneira
de olho nas primeiras edições
depois havia
aquela gente dos jornais
pequenos corropios
em fila indiana ou aos magotes
pelas ruas estreitas e de vistas largas
tipógrafos de offset
atingidos por chumbo e de alma tingida
gasta por várias edições
de pesadelos de muitas tiragens
e pouco dinheiro
no Largo Camões
perante os turistas
predominava a ousadia ácida
dos pombos
tornava menos épica
a poesia
mas lhe dava cheiro.
Lisboa, 10 de Abril de 2014
Carlos Vieira
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