quinta-feira, 10 de abril de 2014

Memória olisoponense I

Lembro-me do meu dia
se medir
pelo tempo que ía levar
o elevador da Bica a chegar
do Bairro Alto ao Cais do Sodré
e daquele bailado 
das mãos acentuando os vincos 
nos envelopes do futuro
do pregão do homem das cautelas
em contramão
com a sombra esquálida 
de um cão vadio 
de permeio o brilho metálico 
do papel couchée
e das palavras entrecortadas
no esgar electrónico 
da guilhotina
soube do cheiro a cola 
e à tinta fresca
nas resmas de estampados 
recém chegados da tipografia
da antecedência do papel 
dos presentes
e dos ausentes
lembro-me das mulheres 
com o tacão alto preso 
na calçada portuguesa
e daquelas de coração solto
e das sardinhas assadas
na tasca em frente
e da sua prata escamada
por mangas de alpaca
do baton vermelho 
a esborratar a burocracia
volto ao café Oríon 
no Calhariz 
com seu séquito de bancários 
preocupados 
com o fundo de caixa
e um olho 
nos sapatos de verniz
e a taxa de esforço 
e de câmbio
ou o crédito mal-parado
e os amarfanhados alfarrabistas
desconfiados num recôndito 
a olharem-nos da penumbra
por cima dos seus óculos redondos
de aros de tartaruga 
acariciando as lombadas de carneira
de olho nas primeiras edições
depois havia 
aquela gente dos jornais
pequenos corropios
em fila indiana ou aos magotes
pelas ruas estreitas e de vistas largas
tipógrafos de offset
atingidos por chumbo e de alma tingida 
gasta por várias edições
de pesadelos de muitas tiragens
e pouco dinheiro
no Largo Camões
perante os turistas
predominava a ousadia ácida 
dos pombos
tornava menos épica 
a poesia
mas lhe dava cheiro.

Lisboa, 10 de Abril de 2014


Carlos Vieira

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