Sinto-lhe a falta, daquele dorso escuro da serra matizada de aromas de urzes, deitada, desenrolando na minha frente a lascívia, reinventando os mistérios das grutas e a clarividência súbita das penedias.
No sopé, distribuindo-se pela linha de água, a sombra dos troncos magros das árvores, coroadas de cabeleiras fartas, refresco os pés no arroio com o olhar embaciado nas amoras dos silvados, enquanto a mão ágil evita a voracidade dos espinhos.
O meu olhar embevecido desce pelo esverdeado claro e escuro dos campos mais ou menos abandonados e pelas arestas dos muros de calcário que protegem as culturas das intempéries, forrados de musgos e líquenes.
Poder amar a aritmética dos pomares e os cachos de pequenos sóis, a sinfonia minimal repetitiva e madrugadora dos motores de rega e a alegria das batatas arrancadas, agora por cima da terra fresca.
Memórias do triunfo do sal por cima dos pepinos cortados em quatro talhadas, depois conhecer a audácia e a destreza de subir a árvore e devorar as cerejas. Hoje, ainda alguém sabe cortar uma cana do canavial e fazer uma gaiola para um grilo ou construir uma flauta?
Pouca gente sabia onde se podia atravessar o rio e atalhar caminho em tempo estival, saltando de pedra em pedra sem escorregar, enquanto os pássaros e os pensamentos esvoaçavam, em torno da invulgar proliferação dos insetos e dos pequenos bichos álacres.
Descia a ladeira e as ovelhas tosavam a erva fresca e uma já velha mula ruminava, enquanto me observava sempre curiosa, subia-lhe a garupa e em devaneios, todo os dias, cavalgava um país.
Agora, aqui no meio do tráfego, da rua da urbe, sonho a aldeia, sou habitado desta diferença, sinto a falta do vento, da melancolia das horas onde nada acontece, a eterna presença do limoeiro no quintal, o inconfundível manto do crepúsculo a apagar as casas, os animais nas pastagens, ao longe identifico o espetro dos utensílios rurais.
Vou a correr para o campo reviver o aroma, revisitar nos prados, os grandes penedos e as árvores mitológicas dos caminhos e ao ali chegar, assaltam-me os sonhos dos bancos dos jardins, vêm até mim toda a humanidade dos rostos inquietos na multidão, as tintas queimadas, a ferrugem do ferro forjado das varandas, a diversidade de janelas e portões, onde rostos por vezes espreitam ou são por nós, por vezes vigiados.
Grandiosa é a noite das cidades, na solidão extraordinária das penumbras. Sinto-lhe a falta, dos círculos de luz dos candeeiros na rua e suas efémeras ternuras e pequenas iluminações, do néon dos anúncios sempre apelando a nossa perplexidade e a nossa compreensão.
O ruído de fundo dos automóveis para que seja impossível de todo, a tristeza mais pura e que seja tão mais fecunda a silente solidão. Acrescento aqui, os momentos mágicos do cinema, connosco mesmo, todos os personagens do filme e o ruído da máquina de projeção.
Como se pode viver sem saber articular a ocasião das gruas nos portos, o sussurrar das embarcações, o marulhar das ondas nos cascos e o desgaste destes contra o cais.
A ordem tricolor dos semáforos, a vertigem das passadeiras, a razão dos parqueamentos, o peso dos elevadores, o alerta das campainhas, essa imensa panóplia de estruturas que as cidades nos concedem, para assim podermos aceder a essa ilusão e embuste da moderna democracia do mundo.
Estou aqui ao pé deste pessegueiro e tenho necessidade dos encontros nas esquinas e os perfumes que nos encantam nos passeios, quase sinto nos meus dedos a vertigem dos tecidos, a bissetriz dos olhares, na coincidência das paragens.
Por último, estou sempre a meio caminho, neste avião da poesia que atravessa a tarde e vai ao encontro do alvoroço dos países, sou pois afinal assim por alto, nestes versos de cinto apertado, o resultado desta interceção que me faz sobrevoar o campo e a cidade.
Lisboa, 19 de Abril de 2014
Carlos Vieira