quarta-feira, 30 de abril de 2014

O sol redondo...


o sol redondo rebola
para o outro lado do mundo
ao fim da tarde 

Lisboa, 30 de Abril de 2014


Carlos Vieira

a árvore da espera



sento-me 
dias a fio
debaixo
da azinheira
voltado para o sul
para ver-te passar
eclipse que só eu
sei alcançar
e que mais tarde 
ou mais cedo
sei se vai desmoronar
o céu azul

a esta árvore 
secular
cerca-a 
um oceano
ondulante
de trigo dourado
como tu a mim
me rodeias
sou o náufrago
que para poder
respirar
pelo crepúsculo
em vão te espera

ao abandonar
este barco verde
habitado de pássaros
vou estar 
de novo perdido
serei um país 
à deriva
a essa realidade
sobrevive
o sonho
de voltar a amar-te
com a cumplicidade
das estrelas

Lisboa, 30 de Abril de 2014
Carlos Vieira

ao longe...

ao longe
no meio da planície
e do estio
ergue-se uma charrua
que desistiu
de esventrar a terra
agora entrega-se
ao beijar da brisa
ave quieta 
abandonada ao cio 
da eternidade

Lisboa, 30 de Abril de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 28 de abril de 2014

problemas de graduação

ninguém
reparou na sua íris
apenas o oftalmologista
a conhece de cor e salteado
quem me dera poder espreitar
para dentro de si e assim perceber
afinal qual é o seu problema principal
ver-me só ao perto ou ver-me só ao longe?
poderei vê-la a olho nu e ela à vista desarmada?

Lisboa, 28 de Abril de 2014
Carlos Vieira


Foi apanhar o feno...

foi apanhar o feno
que cresceu
na margem da levada
desfaleceu
ninguém sabe se do sonho
que ceifava
se foi da imagem que bebeu
do seu amor
na água fresca que passava

Lisboa, 28 de Abril de 2014
Carlos Vieira



domingo, 27 de abril de 2014

Sento-me...


sento-me 
no cais
entre colunas
o tejo e a luz
vêem à vez 
com vagar
lavar-me 
os pés
e levar-me
ao fado 
esse canto 
de sereia de rio 
de lisboa

Lisboa, 27 de Abril de 2014
Carlos Vieira

memória têxtil



essa indústria 
materna e antiga
feita de nós contados
e de número de agulhas
de meadas e de serões
do teu olhar a tricotar
invernos e verões
e nos prolongamentos
dos fios de lã encontrar
igualmente macias
tuas mãos por momentos
desocupadas de tecer 
a ternura

Lisboa, 27 de Abril de 2014
Carlos Vieira





Daguerreótipo

Primeiro Daguerreótipo que se tem conhecimento, feito pelo seu inventor, Louis Daguerre, em 1837


daguerreótipo

vives nessa câmara escura
onde a abertura do diafragma
te é sonegada
e a gradação dos cinzas
é frequentemente 
adulterada
por excessos de coração
e alterações de luz 

Lisboa, 27 de Abril de 2014
Carlos Vieira




Soneto do amor e da morte

VASCO GRAÇA MOURA (1942-2014)

Soneto do amor e da morte


Quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão. 

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não 

tivesse de acabar,
sempre a doer, sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão. 

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

sábado, 26 de abril de 2014

Boca do Inferno


de novo
esta saga do dentista
de boca aberta
das reprimendas
de ter que passar melhor
o fio dental
da saliva a acumular-se 
da broca a perfurar
das cáries
e eu já de todas 
as cores
de situações
delicadas
daquelas mãos
delicadas
do já não há 
nada a fazer
e onde está 
o raio da esperança
do deixaram aí
umas raízes
e dos abscessos
e vai uma ponte
ou um implante
eu que já 
não tenho dentes
como dantes
agora
pode gargarejar
do não é preciso 
anestesia
se doer 
braço no ar
de novo
este velho ritual
de boca aberta
sem espanto
e agora sem incisivo
minha boca
do Inferno

Lisboa, 26 de Abril de 2014
Carlos Vieira



O dia promete...

o dia promete, depois das insónias que começaram cedo, vêem aí chuva, urgência do dentista, de seguida urgência pediátrica com a mais pequena. ponho-me a adivinhar uma virose. é urgente o amor, descansar. superar as dores do corpo, do bater o dente, o bater do coração de ansiedade, da alma e do mundo, mudar de vida. é urgente ter tempo, e mais uma vez ter por inteiro a noite ou o dia. 
são seis horas da tarde, estou a sair do Hospital dos Lusíadas, estou formado em urgências pediátricas, o meu prognóstico estava correcto, nunca estou curado disto, nada me põe mais aflito, do que todos os males e maleitas destas três miúdas. de qualquer forma tambêm não existem muitas outras que me ponham mais feliz, do que as traquinices e graçolas e pequenas vitórias diárias das mesmas.
moro nesta contiguidade que hei-de fazer. a escrita corre atrás das três irmãs e elas não lhe ligam nenhuma. é bem feito! pois de amar e da vida elas tem outra urgência, longe da nossa inclinação para o cerebral e sem as minhas insónias e presunçosas ironias. se queres ser poeta vive a vida! diriam elas, na sua forma desempoeirada e natural de rindo versejarem.

Lisboa, 26 de Abril de 2014

Carlos Vieira

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Saí à rua...


Saí à rua
estava uma daquelas 
manhãs de primavera
de uma brisa fria
troçando 
pelas esquinas
e murmúrios verdejantes
de árvores desprotegidas
um dia inteiramente 
coincidente
com o desconforto
que me atravessava
o espírito
em contradição
com a data festiva
a pedir um grito
"Solta-te coração
e alma, e tudo!"

Lisboa, 25 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Manifestação

hoje muita gente 
saíu à rua
no país
e houve muita
que ficou em casa 
fora os que ficaram
à porta e à janela

aqueles 
que não tem casa
podem estar melhor 
que aqueles 
que não tem rua
e tem país
todos de endereço
desconhecido

recordo aqui
aqueles 
a que foi impossível
ir à rua
e outros que nem sair à rua
puderam
todos de castigo

depois existem 
os que tem uma rua 
de liberdade a crescer
dentro de si
uma festa
onde todos vão passear

felizes
os que vivem
à sombra da liberdade
da sua gente
de uma casa
de uma rua
de um país

infelizes 
os que tendo uma casa
por o mundo terminar ali
ignoram a liberdade
e os que possuindo ruas
não tem casa 

quero
vos confessar
que não saí à rua 
fiquei em casa 
de braço dado
com a liberdade
sem reservas

aplaudo
desde aqui
os que livremente
sem preconceito
puderam sair à rua
e os que não puderam 
sair de casa e os outros 
que podendo 
o não quiseram fazer 
todos símbolos
de liberdade

hoje
nem todos 
porém 
puderam viver 
essa liberdade
ou se libertaram 
das prisões 
que crescem
dentro e fora de si
de nós

neste tempo
e neste dia
vivo esse lamento
de estarmos hoje
mais longe de nós
desse dia 
"inicial inteiro e limpo"
de um país

Lisboa, 25 de Abril de 2014
Carlos Vieira




quinta-feira, 24 de abril de 2014

poema em vias de extinção



o lince 
lindo animal 
que vislumbrei ao relento
num "relince"

o lince 
não sei se eu o procuro
se ele me visita
nesta relação 
de avistamentos

o lince
tão ágil 
tão vulnerável
sobrevivente contradição

lince
em pé de fantasma
na Serra da Malcata
vive de medir as distâncias

lince
vai anjo fulgurante
que nunca vi
pela penumbra dos trilhos
predador de cheiros
matizes e reflexos

lince
notívago caçador às riscas
em busca do equilíbrio
e da sobrevivência
 impossível equação 

lince
poeta da descrição
traída 
pintor de sombras
e silêncios
em vias de extinção

Lisboa, 24 de Abril de 2014
Carlos Vieira


poema granular


a viagem 
é interrompida
por grão de areia
na engrenagem
e subtil
é a semente 
de pedra
que nos faz tropeçar

como chegaste aqui?
pequeno pedaço de terra
que trazes contigo
o insustentável peso do mundo
foi a tempestade
foi um pássaro de passagem 
ou és estilhaço da guerra

ardil do silêncio
empedernido e inábil
coração de cristal
lágrima esculpida
árido segredo
que o vento 
sopra do deserto

ao micoscópio
inventario-lhe 
as propriedades
redondo 
e um pouco rugoso
grau de resistência: 
elementar
neste laboratório
onde sonho lábios 
e sabores

como é fácil ver
o argueiro 
no olho do outro
e difícil ser cristalino
é ser 
o sal da terra
e suportar 
dentro do sapato
a areia da praia

ínfimo grão a ti 
regresso 
humildemente 
e só te pergunto
qual o caminho?
porque na origem 
e no final
irmãos seremos 
de novo reduzidos 
a pó
grão a grão

Lisboa, 24 de Abril de 2014
Carlos Vieira










quarta-feira, 23 de abril de 2014

Foste ao mercado de bairro

foste 
ao mercado
de bairro
eu fiquei 
à tua espera
aguardo 
o teu aroma de fruta
de coentros
hortelã e salsa
dás-me a tua mão
para descer 
das nuvens
regressar à terra

Lisboa, 23 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Soalheira

a tarde de hoje 
estava soalheira
estranha palavra
que desconhecida alquimia
ou oculto rio trouxe até mim
e a pôs na minha boca
a deixou nesta noite
a iluminar o pousio
das minhas mãos
e da poesia

Lisboa, 23 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Flores de liberdade



revolução dos cravos, 
das flores
de Abril, de 74
enfim 
de uma manhã de sol
lembro-me 
que a minha mãe
arejava a casa
e fazia a limpeza semanal
embora
goste de considerá-la
uma premonição
ficou-me 
a frequência
e a força da expressão
de um rádio sintonizado
no coração
e a alegria da liberdade 
proclamada
aos sete ventos
frase feita
seja lá o que isso for
para os meus catorze anos
o ser, o querer ser, 
o dever ser 
livre
tinha razão
o que nessa idade
e tempo da ilusão
por livros viajados
fez o mapa do mundo
e o ser humano
duma dimensão
incomensuravelmente maior
do que aquela 
que pudera algumas vez 
sonhar
e é essa amena flor
que interessa regar
é dessa revolução 
tranquila
que estou a falar

Lisboa, 23 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Flores de jardim XX



pediu à florista
- " quero flores?"
ela retorquiu
- "que flores? 
para que efeito?
ou "para que enfeito?"
- " não sei! quero
flores verdadeiras!"
desesperada,
a florista insistiu
- " quer um bouquet?
uma coroa? um arranjo?
dois ou três pés"
- " é para uma mulher? 
para alguém que faleceu?"
subitamente,
parecendo acordado
replicou " não!
são para mim! 
talvez, dois três pés!
sobretudo é importante
o seu perfume!
que me faça lembrar,
para quem vivo
e por quem morro!
flores de coragem,
que aguentem!"

Lisboa, 23 de Abril de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 22 de abril de 2014

Flores de jardim XIX



Existe sempre 
em qualquer reino
um jardim proibido
por decreto
para que a donzela
descanse
no seu dossel 
florido
e leia o texto
censurado
uma folha seca
marca a passagem
secreta
onde a donzela 
suspira
e vai esperar
o príncipe
que depois
impotente
se revela.

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Flores de jardim XVIII




sobre a roseira o jardineiro curvado
entre rosas e espinhos, a barba e cabelo branco
efémera ilusão de um decadente rei coroado

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira



Flores de jardim XVII



a hera tece 
em pouco tempo
a sua renda verde
por cima do cinzento 
da pedra vulcânica
muitos séculos 
depois do rumor 
do fogo
o ensurdecedor
silêncio da seiva

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim XVI


dou-lhe uma flor
uma qualquer
que na sua essência
lembre à mulher
que amo 
do meu amor
sendo assim
será mais 
que uma flor
e em cada espinho
o caminho
aceso da pétala
e da pele 
o perfume 
a que chegámos
destilado
a partir das noites
de suor e mel
dou-lhe esta flor
fruto da madrugada
que foi nossa


Lisboa, 22 de Abril de 2014


Carlos Vieira

flores de jardim XV

o samurai contempla no vale
as flores de laranjeira
agora aguarda serenamente 
a morte
o último combate


Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim XIV



crisântemos secos
sobre o mármore rosa
onde me sento
tento 
decifrar o mapa 
das suas veias
que nos conduzem
a outro mundo
ali corre o sangue
da eternidade

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim XIII

um cravo vermelho 
na lapela
teus ávidos
lábios carmim
convidam ao motim

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim XII



debaixo dos nenúfares
peixes vermelhos
por cima
pequenas rãs
e a memória
dos elefantes

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim XI



choveu
pouco tempo
agora a água 
escorre 
pelo caule
vai evaporar-se 
das corolas
ou nelas uma ave
irá saciar-se
mais suave será
seu canto
nada se perde
eu apanhei
uma constipação 
e estou a arder
em febre
só de atravessar
o jardim
sou uma flor 
de estufa

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Flores de Jardim IX


devagar
a passear pelo jardim
fico com a certeza
de que passaste 
por aqui
só de observar
a forma como as flores
se inclinam para mim

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim X


arranco as ervas daninhas
em silêncio comovido
as flores agradecem

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim VIII


uma formiga 
sai de debaixo
da terra 
e sobe o caule 
entrou pela corola 
entreaberta 
da flor
para lhe contar 
um segredo

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim VII


esqueceu-se
de regar as flores
ali começou a sua morte

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim VI


o pé do cravo
teve formigueiro
no cano da espingarda

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos 

flores de jardim V


para o malmequer
não é indiferente 
perder as pétalas ou arrancá-las

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim IV


uma flor
tímida fecha-se
perante a insistência do olhar

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieir

flores de jardim III


quando ela fala
contorcem-se as raízes 
das plantas do canteiro 

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

flores de jardim II


a flor volta-se para ela
e banha-se na haste 
de água do regador

Lisboa, 22 de Abril de 2014

flores de jardim I


no botão de rosa
ao relento
um suor frio

Lisboa, 22 de Abril de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Tocado pela solidão


Agora vai 
pelo meio da rua
indiferente 
à chuva e ao sol
às buzinas 
e aos insultos
está loucamente 
apaixonado
foi "electro-tocado"
pela solidão
tem assim
o mundo todo
na sua mão
poder ou ousadia
de andar
em contramão.

Lisboa, 21 de Abril de 2014
Carlos Vieira

A neve derrete...

a neve derrete 
ao sol primaveril
amanhã ao acordar 
não sei 
se é o murmúrio 
da corrente de água 
no regato que oiço
se és tu 
que ainda corres
à minha beira

Lisboa, 21 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Elogio à discrição



Discreto
levitar
da tua silhueta
a passear
erecta
sob o drapejar
das folhas
por instantes
pousa
no teu seio
um pássaro
a quem
como eu
lhe pareceu
ouvir
um secreto
imperceptível
suspirar
do teu sagrado
coração.

Lisboa, 21 de Abril de 2014
Carlos Vieira

O Silêncio de Odilon Redon

Soar do gongo



O eco do gongo
nas montanhas
acorda o pastor
chama à oração
o monge asceta
inicia avalanche
o voo do falcão
baliza o trilho
e a distância
entre o cume
e o precipício
bate uníssono
coração dentro
de nós o gongo
desesperado.

Lisboa, 21 de Abril de 2014
Carlos Vieira



Um lugar para o amor



Chamava-se Joana
e apenas conserva dela
uma imagem enevoada
do seu rosto 
como se tivesse 
uma máscara
envergava
umas jeans
e uma blusa branca
lembra-se
da sua voz rouca
e da suavidade 
única dos seus lábios
e da inacreditável
arquitectura
dos seus seios
ali junto ao Forte de Carcavelos
lembra-se de ficar
encadeado pela lanterna
de um militar da GNR
"-Não se pode fazer amor aqui!"
sublinhado
pelo barulho do mar.

Lisboa, 21 de Abril de 2014
Carlos Vieira

domingo, 20 de abril de 2014

A bola bateu na trave...

a bola bateu na trave
e depois no poste
fez tabela
no guarda-redes
e devagar
atravessou
a linha de golo
da alegria
e da tristeza

Lisboa, 20 de Abril de 2014
Carlos Vieira

A rapariga do trapézio


a rapariga do trapézio
foi ave mais bela 
que conheci

de todos os espetadores
do circo
só eu fazia voar aquele sorriso

lembro-me do primeiro
beijo
sem rede

tantas vezes fizemos amor
entre rugidos de leão
e rangidos de rulotte

eu espreitava na tenda
onde ela voava 
de coração apertado 
e a seguir
era o nosso número 
de magia
de cortar a respiração

havia um momento
em que o circo partiu
e eu fiquei definitivamente
com o trapézio
do dia a dia

Lisboa, 20 de Abril de 2014
Carlos Vieira

 O amor de Marc Chagall

Ela sacode...

ela sacode 
o tapete
persa
e dele caiu 
o brinco
o mesmo 
que ouviu
o beijo
e calou
o segredo
e se desprendeu

Lisboa, 19 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Hora de recolhimento

Embrenho-me 
num pequeno 
bosque de bétulas
vislumbro um vulto 
talvez um animal
um veado à solta
pura reminiscência 
que suscita a catedral
de pratas dos troncos
no vitral feito da nervura 
das folhas refractada 
em reflexões de luz difusa
de brincos precários 
de água e sempre 
renovadas ilusões.

Lisboa, 20 de Abril de 2014


Carlos Vieira

sábado, 19 de abril de 2014

Balada do desempregado

senta-se no chão
ali naquela rua do Poço do Bispo
esfrega bem os olhos
limpa a única lágrima
que lhe escapou
tem nas mãos um papel
esborratado
é para o fundo de desemprego
ainda tem coração
foi sempre um homem de coragem
de desafios
-compreendo, sim! é a crise!
a inexistência de encomendas
os produtos descontinuados
- obrigado pelas palavras!
- o sr. foi um empregado modelo!
só os cobardes é que desistem
não é surdo ou mudo
possui agora toda aquela rua 
e todas as outras da Nação
- compreendo, sim! 
as economias emergentes!
apesar de tudo pensas 
na falta de competividade 
aos cinquenta e cinco anos
tens casa para pagar e família
foste despedido e ainda sonhas
eis uma bela oportunidade 
para mudar de vida
para pensar no futuro
de poder conhecer outro país
é como se tivesses
agora chegado ao mundo 
- compreendes, sim! 
a bolha imobiliária!
o Lehman Brothers! 
a divída pública!
e ainda ter duas mãos
para esconder "as vergonhas"
senta-se no chão 
de uma rua do Poço do Bispo
e esfrega bem os olhos
à vergonha de não poder trabalhar
junta-se a culpa de não ter que comer
que belo serviço foi arranjar
neste ocaso da vida
tem de haver alternativa
à luz do comboio
ao fundo do túnel

Lisboa, 19 de Abril de 2014
Carlos Vieira

As cidades e os campos

Sinto-lhe a falta, daquele dorso escuro da serra matizada de aromas de urzes, deitada, desenrolando na minha frente a lascívia, reinventando os mistérios das grutas e a clarividência súbita das penedias.
No sopé, distribuindo-se pela linha de água, a sombra dos troncos magros das árvores, coroadas de cabeleiras fartas, refresco os pés no arroio com o olhar embaciado nas amoras dos silvados, enquanto a mão ágil evita a voracidade dos espinhos.
O meu olhar embevecido desce pelo esverdeado claro e escuro dos campos mais ou menos abandonados e pelas arestas dos muros de calcário que protegem as culturas das intempéries, forrados de musgos e líquenes.
Poder amar a aritmética dos pomares e os cachos de pequenos sóis, a sinfonia minimal repetitiva e madrugadora dos motores de rega e a alegria das batatas arrancadas, agora por cima da terra fresca.
Memórias do triunfo do sal por cima dos pepinos cortados em quatro talhadas, depois conhecer a audácia e a destreza de subir a árvore e devorar as cerejas. Hoje, ainda alguém sabe cortar uma cana do canavial e fazer uma gaiola para um grilo ou construir uma flauta?
Pouca gente sabia onde se podia atravessar o rio e atalhar caminho em tempo estival, saltando de pedra em pedra sem escorregar, enquanto os pássaros e os pensamentos esvoaçavam, em torno da invulgar proliferação dos insetos e dos pequenos bichos álacres.
Descia a ladeira e as ovelhas tosavam a erva fresca e uma já velha mula ruminava, enquanto me observava sempre curiosa, subia-lhe a garupa e em devaneios, todo os dias, cavalgava um país.
Agora, aqui no meio do tráfego, da rua da urbe, sonho a aldeia, sou habitado desta diferença, sinto a falta do vento, da melancolia das horas onde nada acontece, a eterna presença do limoeiro no quintal, o inconfundível manto do crepúsculo a apagar as casas, os animais nas pastagens, ao longe identifico o espetro dos utensílios rurais.
Vou a correr para o campo reviver o aroma, revisitar nos prados, os grandes penedos e as árvores mitológicas dos caminhos e ao ali chegar, assaltam-me os sonhos dos bancos dos jardins, vêm até mim toda a humanidade dos rostos inquietos na multidão, as tintas queimadas, a ferrugem do ferro forjado das varandas, a diversidade de janelas e portões, onde rostos por vezes espreitam ou são por nós, por vezes vigiados.
Grandiosa é a noite das cidades, na solidão extraordinária das penumbras. Sinto-lhe a falta, dos círculos de luz dos candeeiros na rua e suas efémeras ternuras e pequenas iluminações, do néon dos anúncios sempre apelando a nossa perplexidade e a nossa compreensão.
O ruído de fundo dos automóveis para que seja impossível de todo, a tristeza mais pura e que seja tão mais fecunda a silente solidão. Acrescento aqui, os momentos mágicos do cinema, connosco mesmo, todos os personagens do filme e o ruído da máquina de projeção.
Como se pode viver sem saber articular a ocasião das gruas nos portos, o sussurrar das embarcações, o marulhar das ondas nos cascos e o desgaste destes contra o cais.
A ordem tricolor dos semáforos, a vertigem das passadeiras, a razão dos parqueamentos, o peso dos elevadores, o alerta das campainhas, essa imensa panóplia de estruturas que as cidades nos concedem, para assim podermos aceder a essa ilusão e embuste da moderna democracia do mundo.
Estou aqui ao pé deste pessegueiro e tenho necessidade dos encontros nas esquinas e os perfumes que nos encantam nos passeios, quase sinto nos meus dedos a vertigem dos tecidos, a bissetriz dos olhares, na coincidência das paragens.
Por último, estou sempre a meio caminho, neste avião da poesia que atravessa a tarde e vai ao encontro do alvoroço dos países, sou pois afinal assim por alto, nestes versos de cinto apertado, o resultado desta interceção que me faz sobrevoar o campo e a cidade.

Lisboa, 19 de Abril de 2014
Carlos Vieira

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O córrego

o córrego
já só existe
para mim
no sulco
da poesia 
tento ainda
agora ouvir 
a sua melodia
na noite triste
coincide 
na insónia
dos canos
da água
da companhia
o desengano
vence-me
nem a sede
nem a solidão
é a mesma

Lisboa, 18 de Abril de 2014
Carlos Vieira








Sem palavras I



ladra 
desesperado
de fome 
ou da solidão
no fim do casario
um cão

a coluna de fumo
eleva-se 
de uma chaminé
à espera 
que se legende
a vida
sem horizonte

um pinhal 
esconde
a alma pura
do pinhão
o que está para lá
do abismo
a quem chamam
desconhecido

alguém espera
as palavras
que partiram
destemidas
pela estrada 
de terra batida
que voltem
com pessoas

os melros 
parecem letras 
pretas
gordas
que ficaram
por ali
a debicar
em silêncio

eu fico 
ali da janela
a esquadrinhar
no fim do lugar
anónimo
sobrevivente
a desdenhar
da crença
no princípio 
do mundo 


Lisboa, 18 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Tornozelo...

tornozelo
esse osso esquecido
ao articular os teus passos
na feliz coincidência do teu corpo
rumo ao apelo dos meus braços

Lisboa, 18 de Abril de 2014


Carlos Vieira

Eterno retorno III



                                                                           O amor ou é louco ou então não é nada. (Milan Kundera)

do teu corpo 
ficaram
indeléveis 
as frequências
os recantos
a tendência
de decantar
na paisagem
que me cerca
os teus aromas
o pecado 
de conspirar 
nos teus lábios
a ler para mim
no meu tronco
a dedilhar
o deslumbramento
ao despertar 
entre a névoa
do desejo
hoje procuro
rente à pele decifrar
as cicatrizes
que deixaste 
por sarar
regressar a ti
descobrindo
no caminho
os rastos
que fiz sozinho
acompanhado
de estranhos ritmos
e cintilações
que não destrinço
se vindas
do passado
se do futuro
não sei se estou
tão perto 
ou se tu estás 
tão longe assim
ou vice versa
no amor sempre
prevalece 
este equívoco
esta desordem 
do tempo
e da distância
em que tu
és apenas 
tudo aquilo 
que nunca
se esquece

Lisboa, 18 de Abril de 2014
Carlos Vieira



quinta-feira, 17 de abril de 2014

Coração de quatro folhas

Coração de quatro folhas

I

nesse dia 
a neve caiu 
e tu foste nua
a razão de fogo
que nos despiu

II
em noite de Verão
foste todas 
as fases da lua
instante dourado 
das folhas em dança 
de Outono
nas primeiras chuvas

III
permaneces
latente 
flor de luz
a iluminar
o caminho
que permitiu
lembrar
o rumo 
inexplicável
do coração

IV
o teu rosto 
urgente
é a bússola
que me faz
acreditar
nada estar 
perdido
só de seguir
teu olhar
o sorriso
emergente
de amanhecer


V
ainda
acredito 
no teu cuidado
atento 
à estranha solidão
de um momento
em que me atrevo
e onde leio 
o teu silêncio
onde descobres 
o mar
que se vai quebrar 
de encontro 
ao cego encanto 
onde te perdi

VI
tu que descrevo
e te revelas
nas quatro páginas 
efémeras
de um conto
de um trevo
onde procuro
esquecer-me
de toda a ausência
e desencontro

Lisboa, 17 de Abril de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 15 de abril de 2014

Eis-me aqui cercado do verde irlandês...

Eis-me aqui cercado do verde irlandês, das pastagens, das sebes, dos renques de árvores, que fazem de fantasmas desgrenhados contra o pôr-do-sol. o horizonte distante e eu neste quarto de hotel, amarrado contra à minha pele, a expôr o meu ponto de vista, todo muito cinzento, como deve ser. cumprindo este desígnio de lamber papel e fazer de conta que descobri o ovo de Colombo ou que inventei a roda. lá fora o sol brilha insistentemente, e pela vidraça, imaculada, vinda da direita para a esquerda, a aparição de uma bicicleta vai pelo campo fora, duas rodas e uma rapariga de jeans, tudo tão sereno, pueril e harmonioso, nem a corrente salta da cremalheira, e eu que procurava  alinhar as ideias e dar-lhe sequência e ritmo, perdi-me na dissertação, perante o consórcio de observadores, sempre atentos à mínima falha e que nestas coisas dos eventos internacionais, tem outra pedalada.

PortLaoise, 15 de Abril de 2014
Carlos Vieira



segunda-feira, 14 de abril de 2014

Gaiola pendurada

gaiola pendurada
na varanda
oculta no meio do estendal
pássaros
com aroma de detergente
cantam por debaixo 
da tua roupa

Lisboa, 12 de Abril de 2014
Carlos Vieira

domingo, 13 de abril de 2014

geografia humana



se tu vivesses
neste fuso horário
se o teu rumo apontasse
este hemisfério
se eu fosse o teu meridiano
tu serias o meu norte magnético
eu iria pelos meus dedos
percorrer a terna geografia 
dos teus altos e baixos 
relevos
acompanhado da baixa
pressão dos teus lábios

Lisboa, 12 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Fauna I



a elegância da gazela
só é possível
porque a chita a persegue
na savana
o que resta 
são a sombra dos embondeiros 
no crepúsculo

Lisboa, 12 de Abril de 2014

Carlos Vieira

O curativo

Desenrolou
o rolo de gaze 
pegou na tesoura
e cortou-a 
delicadamente
e meticulosa
colocou-a 
sobre a ferida
depois o adesivo
aconchegou-a
ao corpo
tudo rimava
em dolorosa
serenidade
gestos de amor
silêncios 
e pausas de poesia.

Lisboa, 12 de Abril de 2014
Carlos Vieira

O rebanho de um senhor



Foi ver o gado 
mal rompeu a madrugada
ía pela encosta acima
por veredas e atalhos
procurava os animais
que se escondiam
por entre a neblina matinal
as sebes e os silvados
e o surpreendiam
a encostar-lhe docemente
os cornos
expelir o quente bafo
envolvendo-o
no seu olhar bovino
para quem era deus
sem religião.

Lisboa, 12 de Abril de 2014


Carlos Vieira

o fungo



olho ao microscópico 
os fungos 
que se multiplicam
no terreno fértil
o privilégio 
das condições
na excrescência 
esponjosa
dos parasitas 
em simbiose 
com a fragilidade
cada vez mais exposta
da natureza humana

Lisboa, 12 de Abril de 2014
Carlos Vieira

sábado, 12 de abril de 2014

Depois dos aloendros

Olhas 
os aloendros
desafios
de sabres 
acesos de venenos
e desejos
antes da praia
e de espuma
doce 
é o seu perfume
que me confunde
ou é a maresia
o antídoto
que sacia os teus lábios
ao sabor
da ondulação
bravia
de uma avidez 
de rosa 
e resquícios
de areal
sem conseguir
que o mar se cale
e dele recolher
o até agora
inacessível
segredo
da flor de sal.

Lisboa, 12 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Impassível perante o tempo reencontrado

Quando chegavam os primeiros chilreios, pinceladas de acordes, os aromas dispersos e inconsistentes das primeiras flores e cores, o irromper de botões acompanhados do rumor dos insectos, a transparência de clorofila das folhas novas, esses sinais sempre renovados e ancestrais da primavera. Ele pedia ao filho mais velho que, por vezes, o visitava depois do trabalho, para lhe colocar a sua cadeira de balouço, debaixo do carvalho, orientada para a oeste.
Esta árvore tinha várias vezes os seus oitenta anos, ali expostos às ventanias que desciam das montanhas e às agruras das estações, a todas as dores provocadas pelos seus netos, que lhe subiam os troncos, ao facto de nenhum raio a ter incomodado, apesar da sua mais que secular longevidade, permitiu-lhe celebrar a imponência da sua presença e da sua perenidade, vários quilómetros em seu redor.
A meio da tarde, por aquela época do ano, até chegar o Inverno, arrastava-se para aquele seu poiso de observação e levava um velho livro consigo, uma edição antiga, em francês, que outro velho amigo um dia lhe ofereceu e a que depois mandou pôr capas de carneira.
Quando corría uma brisa mais fresca tinha um pequeno cobertor que lhe cobria as pernas e ali permanecia até que chegasse o crepúsculo e a noite apagasse tudo o que vivia à sua volta, já que o livro, as letras e as palavras, já muito que tinham adormecido ao seu colo, após aqueles momentos em que sonhava de olhos abertos ou passava pelas brasas.
A paisagem mais longínqua era dos pinhais, onde o sol se punha e deixava a cúpula das árvores como se fossem os dedos de uma multidão que se manifestava. Embora, para si, aquilo que era mais recorrente, era a última imagem de uma batalha medieval, no momento do primeiro embate. 
Quase ouvia gritos lancinantes de combatentes trespassados por lanças e flechas e relinchos agonizantes dos cavalos, a inquieta elegância de flâmulas e estandartes, a solidão do reflexo das lâminas das espadas, o mergulho da sofreguidão das ordens e dos gritos de incentivo, engolidos nas trevas da noite e pela persistência das mortes e do socorro aos feridos, tudo isto via ou pressentia ao longe, ali tão perto tinha ocorrido a Batalha de Aljubarrota.
Levava umas migalhas no bolso, os pardais claro perceberam que desde início, esse ritual tinha benefícios recíprocos, às aves poupava-lhe algum esforço na busca cada vez mais difícil de alimentação e para o idoso a ilusão, de estar perante aquela aproximação, um pouco menos solitário e da sua diária utilidade.
O que é um facto é que os pássaros passaram a confiar mais na espécie humana, se isso para eles era bom ou mau, era algo que só apenas muitas gerações se poderia perceber. E foi também um facto é que, enquando dormitara lhe presentearam a manga do casaco com uma dejecto nauseabundo, dizem os antigos, sinal de sorte.
Outras vezes embrenhava-se na leitura, mais própriamente releitura, daquele autor francês que desde a morte da sua mulher, lhe fazia companhia, não tanto pela história mas pela confluência das palavras, das sílabas e dos sons, da justaposição da tristeza e da alegria. A cada texto revisitado, a cada ângulo do se estado de alma, reencontrava-se a si próprio, a alegria da sua solidão e a tristeza das amizades esquecidas.
Chegava a altura da melancolia da queda das folhas e do desprender da bolota, à sua volta e sobre os seus chinelos, quase sentia a terra a revolver-se, nesses dias lia pouco, soletrava os factos mínimos da natureza, a acobracia da aranha pendurada da teia, um coelho bravo mais afoito, o artifício luminoso dos pirilampos e o indescritível contraste dourado do carvalho contra o céu.
Finalmente, um dia o filho mais velho regressou do trabalho e perante o silêncio de resposta do se pai, teve pela primeira vez um sobressalto, o seu pai poderia estar morto, o livro caído no chão e as folhas do carvalho quase o cobriam, dado o vento que se tinha levantado, o seu rosto respirava um grande sossego, não deveria ter morrido há muito tempo. Lisboa, 12 de Abril de 2014 Carlos Vieira

Ponto morto

Sinto-me  o novo prisioneiro enclausurado neste tempo  perdi a senha que me levava por inteiro à madrugada limpa esqueci essa conjugação de palavras que nos tocam e nos libertam onde está a música rente à pele essa redescoberta dos sentidos eis-me aqui que atónito me confronto com a eleição da hipocrisia e do vazio será isso  que dizem que é a morte ou são apenas vestígios ou raízes. Lisboa, 12 de Abril de 2014 Carlos Vieira

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Terra de ninguém



Habita
esse local
ermo
é um sítio
frugal
um lugar
onde vive
de pé
essa gente
banal
apenas
com dois m2º
de terra
rural
um céu
de fundo azul
por cima
debaixo
a cama
é todo
o mundo.

Lisboa, 11 de Abril de 2014

Carlos Vieira

Memória olisiponense III



Façam o pino 
no Cais das Colunas
que abraçam no vazio 
restos da esteira de espuma
dos cacilheiros
vejam de pernas para o ar 
o país e o Terreiro do Paço
e o verdete de D. José 
"qual a pata direita do seu cavalo"
eis aqui estes abraços de pedra
este anódino rei
chamem o bobo da corte
e que nos divirta
debaixo do arco da vã glória
tudo escrupulosamente vigiado 
a partir das janelas dos ministérios
um imenso punhado 
de passadas e de presentes
vacuidades
podemos oferecer 
a qualquer pacato viajante
e endinheirado turista
ou cidadão 
nesta bela praça
a esconsa visão do universo
que nos venceu
como se nela coubesse 
o mundo inteiro
entrem meus caros senhores
neste país passarelle
este circo de vaidades.

Lisboa, 11 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Memória olisiponense II



A manhã desperta 
sobre o dorso de mármore
branco sujo
do chafariz pombalino
a minha mão mínima 
da infância 
pousada sob o rebordo
húmido
e macio da pedra
depois de páginas
e páginas de Júlio Verne
e de um qualquer
jogo da apanhada
a outra mão roda
a torneira de cobre
pelos meus lábios
subo aos céus
por aquela corda
de água
que apenas 
de escutar-lhe 
o canto
me sacia esta sede
de criança.


Lisboa, 11 de Abril de 2014
Carlos Vieira

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Memória olisoponense I

Lembro-me do meu dia
se medir
pelo tempo que ía levar
o elevador da Bica a chegar
do Bairro Alto ao Cais do Sodré
e daquele bailado 
das mãos acentuando os vincos 
nos envelopes do futuro
do pregão do homem das cautelas
em contramão
com a sombra esquálida 
de um cão vadio 
de permeio o brilho metálico 
do papel couchée
e das palavras entrecortadas
no esgar electrónico 
da guilhotina
soube do cheiro a cola 
e à tinta fresca
nas resmas de estampados 
recém chegados da tipografia
da antecedência do papel 
dos presentes
e dos ausentes
lembro-me das mulheres 
com o tacão alto preso 
na calçada portuguesa
e daquelas de coração solto
e das sardinhas assadas
na tasca em frente
e da sua prata escamada
por mangas de alpaca
do baton vermelho 
a esborratar a burocracia
volto ao café Oríon 
no Calhariz 
com seu séquito de bancários 
preocupados 
com o fundo de caixa
e um olho 
nos sapatos de verniz
e a taxa de esforço 
e de câmbio
ou o crédito mal-parado
e os amarfanhados alfarrabistas
desconfiados num recôndito 
a olharem-nos da penumbra
por cima dos seus óculos redondos
de aros de tartaruga 
acariciando as lombadas de carneira
de olho nas primeiras edições
depois havia 
aquela gente dos jornais
pequenos corropios
em fila indiana ou aos magotes
pelas ruas estreitas e de vistas largas
tipógrafos de offset
atingidos por chumbo e de alma tingida 
gasta por várias edições
de pesadelos de muitas tiragens
e pouco dinheiro
no Largo Camões
perante os turistas
predominava a ousadia ácida 
dos pombos
tornava menos épica 
a poesia
mas lhe dava cheiro.

Lisboa, 10 de Abril de 2014


Carlos Vieira

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Vem muitas vezes...

Vem muitas vezes 
aqui ao cais
afugentar as gaivotas
pousadas 
a balançar 
o seu imaculado branco
neste mar morto
onde exala 
o cheiro fétido dos esgotos
assustadas 
da sua tempestade interior
e ele a precisar 
de recomeçar tudo outra vez.

Lisboa, 9 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Observo...

Observo
o movimento tentacular
dos guindastes
e a monstruosa paciência
dos navios
os marinheiros e estivadores
são bonecos de corda
à volta de geringonças
e bulícios que me azucrinam
a cabeça de matiz
surrealista.

Lisboa, 9 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Leitaria de bairro



O café do Sr. Serafim
era um pequeno estabelecimento
de bairro e no qual agora se vai 
acumulando o pó
e montras e vida embaciada
e três mesas
serviço em câmara lenta
meticuloso
e cabelo cortado à escovinha
o dia-a-dia e fecho ao domingo
religiosamente
para "estar" com a sua senhora
hoje o movimento mede-se
em trinta bicas, cinco com cheirinho
seis garotos e seis descafeínados
vinte galões com tendência para diminuir
uma clientela fixa de idade já avançada 
perpassando pelo minúsculo espaço
um cheiro intenso de perfume barato
e alguma naftalina
tudo com muita educação 
discrição e murmurado
em voz baixa
"foi no que deu a liberdade"
dada a exiguidade
das vidas e dos espaços
vendia alguns pastéis de nata e queques
e ao mesmo pensava para os seus botões
os cuidados com os seus diabetes
umas garrafas de água com gaz 
e muitos copos de água
algumas guloseimas para os netos
um ou outro whisky novo 
e alguns cálices de aguardente
foi-se o movimento de outros tempos
quando teve que meter um rapaz
que lhe deu tanto jeito
para as suas escapadelas 
em que tinha outra idade
e outro garbo
para comparecer às exigências
dos conturbados e tórridos encontros
com a Generosa
sua fiel amante desde sempre.

Lisboa, 9 de Abril de 2014

Carlos Vieira

urzes...

urzes
dos brejos
e descaminhos
ávidas de beijos
das abelhas
acesas de púrpura
e de espinhos


Lisboa, 9 de Abril de 2014
Carlos Vieira


terça-feira, 8 de abril de 2014

Riviera



Estavas sentada 
na pastelaria
ao lado direito 
de quem entra
pediste um descafeínado
bebias o café sem açúcar
fitavas na grande vidraça
o tráfego intenso 
da rua lá fora
as folhas das amoreiras 
coavam e deixavam 
com nervuras
o sol primaveril
no final dos pensamentos
o gradeamento verde
do jardim zoológico
como tu gostavas de bichos
tinhas um olhar
vagamente sonhador
um eco mais ou menos 
longínquo
adquiriu um brilho húmido
no teu olhar
tiveste um esgar
ao provar o café
já tinha arrefecido
detestavas bebê-lo frio
e assim perder a grata
sensação de pegar
a chávena quente 
nas duas mãos
e sonhar 
que poderias ele 
regressar
repentinamente
entrar por ali a dentro
como dantes
pediste para pagar
e fugiste dali
subitamente nua
frágil e de porcelana
faltou-te a desenvoltura
ao passares
por ele 
e a clarividência
de o vislumbrar
surpreendentemente
sentado na obscuridade
que não tinha passado
nem futuro.

Lisboa, 8 de Abril de 2014

Carlos Vieira