O medo era uma herança incómoda na vida do Senhor Ibsen. Não só o medo que os outros podiam sentir por causa dele, mas o medo que ele sentia na análise vulnerável do seu comportamento íntimo e emocional. Tinha um profundo horror às suas próprias reacções, embora fosse capaz de fazer a previsão da gravidade do seu estado de espírito. Intuía quando um infeliz diálogo se desviava para uma zona de violência, sem no entanto conseguir reprimir a sua ira contra alguém. Nunca o Senhor Ibsen poderia controlar o medo que sentia porque o medo era o único sentimento que o ligava à infância e aos pais. Em momentos infectados de maldade, quando a vida dos dois parecia rodopiar num ralo infernal, o Senhor Ibsen considerava a Rita como modelo de caracterização da própria mãe, e dessa forma sentia-se incomodado por tantos estragos causados pela sua consciência devoradora. O que ele deixava escapar do seu comportamento agressivo podia ser entendido por uma sequência de cópias ou representações de atitudes e situações desencadeadas durante a infância, sentindo a presença da Rita como algo precariamente humano e exposta ao seu instinto fulminante e esmagador. O Senhor Ibsen incomodava-se cada vez mais com o seu medo indecente desempenhado pelos seus actos recheados de insanidade moral. Sempre que ele e a Rita se enfrentavam, a mãe e o pai surgiam num ponto transtornado do palco na sua memória como duas silhuetas que representassem uma cena a ameaçar a vida numa complicada ciência de inutilidades conjugais. Havia em tudo o que ele observava diante daquele palco de representação familiar, em todo aquele espaço íntimo e dramático, uma monstruosidade real que o obrigava a meditar sobre a cenografia do medo. O medo que ele transportara da infância e que agora o dominava por completo, corroendo numa alucinação triste e magoada toda a trama dos primeiros tempos de confiança e amor. Tudo a ficar sem história na sua vida, o medo a transformar-se na imagem da mãe que devora a sua própria cria. E o tempo abatia-se sobre ele e sobre todos os que viviam com ele como um caminho cheio de pó. Como um pano que desce sobre um palco onde o silêncio tem a orgulhosa tarefa de ocultar quem fomos e em que espécie de pessoas nos tornámos.
Em Brutal
Ulisseia, 2011
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