sábado, 25 de janeiro de 2014

O poeta e o cão

XIII

INTERIOR DE UMA mansarda. O POETA, deitado no catre, medita de olhos semicerrados. Na única cadeira existente, o CÃO. Atrás da porta está pendurada uma gaiola e, dentro da gaiola, o canário enlanguesce. É absolutamente necessário que o pássaro não dê nem um trinado durante todo o tempo que dure este primeiro, único e brevíssimo acto, pelo que se recomenda a utilização de um canário embalsamado ou de pano.

CÃO – Ouve.
POETA – (Sem mudar de posição.) O que é?
CÃO – Tenho fome.
POETA – Eu também, mas não penso nisso.
CÃO – E os ossos de ontem?
POETA – Foram-se.
CÃO – Sozinhos?
POETA – Sozinhos.
CÃO – Como foi isso?
POETA – Foi esta manhã, quando estavas na rua. O miúdo da porteira pôs-se a tocar o seu tambor de folha. Então os ossos levantaram-se e foram-se embora a desfilar três a três.
CÃO – Seriam ossos de soldados.
POETA – Foi precisamente isso que pensei. Não há muito tempo, parece-me, houve uma guerra.

Silêncio. O CÃO volta a apoiar a cabeça entre as patas e o POETA suspira profundamente.

Javier Tomeo
Histórias mínimas
Tradução de Maria Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes
Livros Horizonte, 1992

Oferecido por Rui Almeida.

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