Fizemos uma reunião, nas traseiras
da sala de trabalhos manuais, à socapa, estava decidido, amanhã, depois da
última aula às 15h30, iríamos atravessar o túnel, seria o nosso Rabecão.
Este funcionava como um misto de
afluente e de esgoto para águas pluviais e outras, passava por debaixo do Mosteiro,
não sabíamos o que iríamos encontrar mas na nossa imaginação de miúdos, alguma
gabarolice dos mais velhos e excessos de mitologia popular contava-se que o
mesmo era habitado, por toda a espécie de coisa, menos por aliados.
Ameaças várias, certamente, era
aquilo que podíamos esperar ou talvez tivéssemos convencidos que não eram tão
temíveis, os perigos que iríamos confrontar.
No outro dia, devíamos munir-nos
de umas velas, lanternas, cordas, roupa velha trazida de casa, à sorrelfa, um canivete
suíço, o cantil de água e sandes para o caso, da missão demorar mais tempo que
o previsto e os obstáculos da empresa exigissem, suplemento alimentar.
Naquela tarde de fim de Primavera,
depois das aulas, pusemo-nos a caminho. Naquela entrada do túnel, camuflada por
um matagal, junto à Nacional n.º1, decidimos quem iria na frente, da fila
indiana e quem iria na retaguarda, os dois lugares de maior perigo e
responsabilidade operacional.
Esticar a corda de sisal, serviria
de ligação entre todos e de sinal de aviso, consoante o número de puxões,
acendemos as lanternas e embrenhámo-nos no túnel onde o breu ancestral, rapidamente
nos abraçou.
Prontos para o que desse e
viesse, insignes herdeiros da tradição dos de Aljubarrota, podia acercar-se
alma penada de castelhano, ratazana do tamanho de coelho, tarântulas de
proporções inimagináveis, alvo das transformações que séculos de escuridão lhe
provocaram, pessoa ou animal lendário, para aqueles quatro jovens vagabundos e
mosqueteiros, só por cima do seu cadáver poderiam levar a melhor.
Mais difícil de ultrapassar era o
cheiro nauseabundo do esgoto, cujo rumor da água corrente ouvíamos, e que se
entranhava por todos os nossos sentidos, o túnel, pouco a pouco, tornava-se mais
estreito ou aumentava nos nossos espíritos, receios vários. Foram soçobrando as
nossas sombras, pois alguma água que caía das paredes e as correntes de ar, foram
apagando as lanternas e depois as velas, finalmente, a caixa de fósforos
naufragou.
Daí para a frente já progredíamos
às apalpadelas, entre quedas, cabeçadas, a respiração mais acelerada e o
coração como um cavalo louco, os nossos risos insolentes, entusiasmos e
palavras de incentivo foram-se esgotando, enquanto o tempo passava lentamente,
os metros se iam cumprindo e nada de luz ao fundo do túnel.
No nosso estudo a “olhómetro”, o
canal era coisa para 1,5 a 2 quilómetros, o que desconhecíamos é que naquelas
condições, as distâncias e as sensações aumentavam na mesma proporção das
ratazanas que nos corriam entre as pernas e as teias de aranha que nos
acariciavam o rosto e ficavam presas no cabelo.
Claro que depois começaram a
ecoar as vozes daqueles que diziam que era melhor recuar, voltar para trás, que
aquilo era um labirinto, que já nos tínhamos enganado no caminho, sendo certo
que nenhum rumo conhecíamos, a estratégia era seguir o caminho em frente. Já tínhamos
passado por vários túneis que pareciam desembocar neste, que seria o principal, acreditávamos alguns
de nós e que se tornou na tese vencedora.
Apesar da corda, a proximidade
entre os quatro temerários ou incautos, foi-se tornando menor, na dúvida de
estarmos mais mortos que vivos, de algum de nós termos encarnado outras vidas
ou da eventualidade, de estarmos mais perto da morte que da glória, sendo certo que
já aspirávamos apenas à sobrevivência.
Por fim, já em quase desespero, divisámos
uma pequena luz lá ao fundo, cépticos se não seria, um corcunda de candeia, que
nos vinha receber e encaminhar para o local, onde iríamos acabar os nossos dias,
espiar severamente, o preço do atrevimento com os deuses ou então, seria a luz
do dia primaveril que iria coroar de glória a nossa audácia.
Entre o temor, o cansaço e a
esperança, lá fomos avançando, foi melhorando a qualidade do ar, diminuindo o
cheiro fétido, fomos inchando na nossa opinião, de que estávamos no rumo certo,
no caminho da salvação e que podíamos estar em vias de cumprir o desafio e alto
desígnio a que nos tínhamos proposto, deixando de rastos mais alguns mitos e
fantasmas.
Já víamos ao longe o canavial do
Lena, esse bucólico rio de que falava Rodrigues Lobo e que recebia este
afluente que tanto o desmerecia.
Aqui estávamos nós, em vias de
conseguir um feito histórico que na nossa mente, somente era igualável, aquele
que o exército do Condestável conseguira, a menos de dois quilómetro, em linha
recta daquele local, obviamente, com diferentes propósitos e recursos.
Já estávamos quase a chegar à
boca do túnel, onde o azul do céu nos recebia sobre um vinhedo na encosta fronteira,
quando ficámos subitamente gelados, perante o emergir, de duas silhuetas que nos pareceram dois crocodilos, que subitamente se erguessem sobre as
patas.
Alguns pormenores sobressaíram na
contraluz, os contornos das pistolas, um cinzento de uniforme familiar e aquele
chapéu peculiar, de plantão, aguardavam por nós, não era necessário legendas,
os dois guardas não estavam ali à espera, por causa dos nosso lindos olhos, não
tinham a mesma percepção, nem partilhavam a opinião, sobre o alcance e a dimensão
da aventura que tínhamos protagonizado.
Levaram-nos para o posto da GNR,
ali próximo, preparávamo-nos para o pior, um valente sermão era a parte menos
desagradável, alguns abanões de permeio ainda eram suportáveis, não nos enganámos,
entre uma furtiva lágrima e desculpas esfarrapadas entre dentes, fizeram-nos
prometer, que jamais voltaríamos a desafiar as forças misteriosas que habitavam
os esgotos, que nós ainda desconhecíamos os perigos a que nos sujeitámos, as
preocupações que a todos causamos e que nossos pais seriam informados, deste
acto de demência, de que tínhamos sido infelizes intérpretes e se mais alguma vez, ousássemos cometer tal loucura ou outra de igual falta de senso,
poderíamos conhecer as agruras do calabouço ou seríamos internados no Hospital
das Brancas.
Nem ombros, nem glória, uma tarde
que desembocou na falta de sensibilidade e de conhecimento, da recusa da arrojo
e do risco pelos mais velhos, destes não era nada que não esperássemos,
deveríamos agora procurar saber quem tinha sido o “bufo” que “pôs a boca no
trombone”, o responsável que ensombrou acto tão corajoso e significativo, que
foi esse percurso subterrâneo, às apalpadelas, contra as trevas e a resignação.
Lisboa, 30 de Setembro de 2014
Carlos Vieira
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