terça-feira, 30 de setembro de 2014

Páginas da escola da vida preparatória III



Fizemos uma reunião, nas traseiras da sala de trabalhos manuais, à socapa, estava decidido, amanhã, depois da última aula às 15h30, iríamos atravessar o túnel, seria o nosso Rabecão.
Este funcionava como um misto de afluente e de esgoto para águas pluviais e outras, passava por debaixo do Mosteiro, não sabíamos o que iríamos encontrar mas na nossa imaginação de miúdos, alguma gabarolice dos mais velhos e excessos de mitologia popular contava-se que o mesmo era habitado, por toda a espécie de coisa, menos por aliados.
Ameaças várias, certamente, era aquilo que podíamos esperar ou talvez tivéssemos convencidos que não eram tão temíveis, os perigos que iríamos confrontar.
No outro dia, devíamos munir-nos de umas velas, lanternas, cordas, roupa velha trazida de casa, à sorrelfa, um canivete suíço, o cantil de água e sandes para o caso, da missão demorar mais tempo que o previsto e os obstáculos da empresa exigissem, suplemento alimentar.
Naquela tarde de fim de Primavera, depois das aulas, pusemo-nos a caminho. Naquela entrada do túnel, camuflada por um matagal, junto à Nacional n.º1, decidimos quem iria na frente, da fila indiana e quem iria na retaguarda, os dois lugares de maior perigo e responsabilidade operacional.
Esticar a corda de sisal, serviria de ligação entre todos e de sinal de aviso, consoante o número de puxões, acendemos as lanternas e embrenhámo-nos no túnel onde o breu ancestral, rapidamente nos abraçou.
Prontos para o que desse e viesse, insignes herdeiros da tradição dos de Aljubarrota, podia acercar-se alma penada de castelhano, ratazana do tamanho de coelho, tarântulas de proporções inimagináveis, alvo das transformações que séculos de escuridão lhe provocaram, pessoa ou animal lendário, para aqueles quatro jovens vagabundos e mosqueteiros, só por cima do seu cadáver poderiam levar a melhor.
Mais difícil de ultrapassar era o cheiro nauseabundo do esgoto, cujo rumor da água corrente ouvíamos, e que se entranhava por todos os nossos sentidos, o túnel, pouco a pouco, tornava-se mais estreito ou aumentava nos nossos espíritos, receios vários. Foram soçobrando as nossas sombras, pois alguma água que caía das paredes e as correntes de ar, foram apagando as lanternas e depois as velas, finalmente, a caixa de fósforos naufragou.
Daí para a frente já progredíamos às apalpadelas, entre quedas, cabeçadas, a respiração mais acelerada e o coração como um cavalo louco, os nossos risos insolentes, entusiasmos e palavras de incentivo foram-se esgotando, enquanto o tempo passava lentamente, os metros se iam cumprindo e nada de luz ao fundo do túnel.
No nosso estudo a “olhómetro”, o canal era coisa para 1,5 a 2 quilómetros, o que desconhecíamos é que naquelas condições, as distâncias e as sensações aumentavam na mesma proporção das ratazanas que nos corriam entre as pernas e as teias de aranha que nos acariciavam o rosto e ficavam presas no cabelo.
Claro que depois começaram a ecoar as vozes daqueles que diziam que era melhor recuar, voltar para trás, que aquilo era um labirinto, que já nos tínhamos enganado no caminho, sendo certo que nenhum rumo conhecíamos, a estratégia era seguir o caminho em frente. Já tínhamos passado por vários túneis que pareciam desembocar neste, que seria o principal, acreditávamos alguns de nós e que se tornou na tese vencedora.
Apesar da corda, a proximidade entre os quatro temerários ou incautos, foi-se tornando menor, na dúvida de estarmos mais mortos que vivos, de algum de nós termos encarnado outras vidas ou da eventualidade, de estarmos mais perto da morte que da glória, sendo certo que já aspirávamos apenas à sobrevivência.
Por fim, já em quase desespero, divisámos uma pequena luz lá ao fundo, cépticos se não seria, um corcunda de candeia, que nos vinha receber e encaminhar para o local, onde iríamos acabar os nossos dias, espiar severamente, o preço do atrevimento com os deuses ou então, seria a luz do dia primaveril que iria coroar de glória a nossa audácia.
Entre o temor, o cansaço e a esperança, lá fomos avançando, foi melhorando a qualidade do ar, diminuindo o cheiro fétido, fomos inchando na nossa opinião, de que estávamos no rumo certo, no caminho da salvação e que podíamos estar em vias de cumprir o desafio e alto desígnio a que nos tínhamos proposto, deixando de rastos mais alguns mitos e fantasmas.
Já víamos ao longe o canavial do Lena, esse bucólico rio de que falava Rodrigues Lobo e que recebia este afluente que tanto o desmerecia.
Aqui estávamos nós, em vias de conseguir um feito histórico que na nossa mente, somente era igualável, aquele que o exército do Condestável conseguira, a menos de dois quilómetro, em linha recta daquele local, obviamente, com diferentes propósitos e recursos.
Já estávamos quase a chegar à boca do túnel, onde o azul do céu nos recebia sobre um vinhedo na encosta fronteira, quando ficámos subitamente gelados, perante o emergir, de duas silhuetas que nos pareceram dois crocodilos, que subitamente se erguessem sobre as patas.
Alguns pormenores sobressaíram na contraluz, os contornos das pistolas, um cinzento de uniforme familiar e aquele chapéu peculiar, de plantão, aguardavam por nós, não era necessário legendas, os dois guardas não estavam ali à espera, por causa dos nosso lindos olhos, não tinham a mesma percepção, nem partilhavam a opinião, sobre o alcance e a dimensão da aventura que tínhamos protagonizado.
Levaram-nos para o posto da GNR, ali próximo, preparávamo-nos para o pior, um valente sermão era a parte menos desagradável, alguns abanões de permeio ainda eram suportáveis, não nos enganámos, entre uma furtiva lágrima e desculpas esfarrapadas entre dentes, fizeram-nos prometer, que jamais voltaríamos a desafiar as forças misteriosas que habitavam os esgotos, que nós ainda desconhecíamos os perigos a que nos sujeitámos, as preocupações que a todos causamos e que nossos pais seriam informados, deste acto de demência, de que tínhamos sido infelizes intérpretes e se mais alguma vez, ousássemos cometer tal loucura ou outra de igual falta de senso, poderíamos conhecer as agruras do calabouço ou seríamos internados no Hospital das Brancas.
Nem ombros, nem glória, uma tarde que desembocou na falta de sensibilidade e de conhecimento, da recusa da arrojo e do risco pelos mais velhos, destes não era nada que não esperássemos, deveríamos agora procurar saber quem tinha sido o “bufo” que “pôs a boca no trombone”, o responsável que ensombrou acto tão corajoso e significativo, que foi esse percurso subterrâneo, às apalpadelas, contra as trevas e a resignação.

Lisboa, 30 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Libélula



Ali estava caída
no cimento
no difícil equilíbrio
do momento.

De renda
de asa ferida
libélula exausta
exibe
seu verde vibrante
e seu anel
de eléctrico azul.

Reergue-se
após ter insistindo
incessante
contra o espelho
no lado errado
da janela aberta
no lado negro
da lua.

Em esforço
desamparada
jaz na rua
e das suas frágeis
antenas
asas e hastes
faz a força
e volta inglória
à mesma luta.

Lisboa, 29 de Setembro de 2014
Carlos Vieira


domingo, 28 de setembro de 2014

Páginas da escola da vida preparatória II




Tirando a bissectriz aos voos côncavos das andorinhas, estávamos no ano da graça de 1971, dias de Abril, segunda-feira.

O guarda do mosteiro, familiar de um colega cujo nome esqueci, pegava naquele molho de chaves e parecia ir conduzir-nos às catacumbas, aos calabouços e mostrar-nos inimagináveis monstros mas não, recordo-me como se fosse hoje, dirigimo-nos a uma torre que se erguia, a partir dos jardins dos claustros.

Éramos um bando de garotos no intervalo das aulas com esse conhecimento privilegiado, subimos uma íngreme, apertada e comprida escada em caracol, resfolegávamos de excitação, pois qualquer sítio a cinco palmos de chão naquela idade, era mais um nível, antes do paraíso.

Eis senão quando, a enorme chave nas mãos espadaúdas do guarda abriu sobre um chiar de gonzos e foi um deslumbramento de calcário, de terraços, um jardim de pináculos e de torres, de bocarras das carrancas e uma imensa filigrana de pedra, apenas para deleite de deuses e parentes que como nós, ali podíamos agora aceder.

Naquela tarde, ali nos deliciámos a jogar às escondidas, enquanto os comuns mortais, se desfaziam em argumentos e trejeitos no bulício do mercado.

Lisboa, 28 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Dia após dia...

Dia após dia
faço mais um risco no poema
confio em afinar a pontaria
do encontro doloroso
com a palavra certa
e afirmar
a partir destes cinquenta e cinco
que estarei a mais de meio da pena.

Lisboa, 28 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

sábado, 27 de setembro de 2014

Páginas da escola de vida preparatória I


Todas as semanas, descia da escola do Ciclo, tinha de ir visitar o soldado desconhecido, esgueirava-me até ao Mosteiro e admirava, demoradamente, a abóbada de Afonso Domingos, pelo contraforte do olhar, via os dois soldados, em sentido, prestes a rebentar. Estremeci daquela visão, capaz de me fulminar, deixei a obra do Mestre que também revisitava e pus-me ao fresco.

Batalha, 14 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

O poeta...

O poeta
é um agente provocador
que na sua poética missão
vive fingindo a dor
o síndrome de Estocolmo.

Lisboa, 27 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

Equilíbrio precário



A destreza da atleta
sobre a trave olímpica
o seu movimento peculiar
depois ampara
o céu com o seu olhar
de estrela inamovível
e perturbada.

Pode sempre acontecer
um imperceptível
desequilíbrio
e que este a desvie
para bondade
que lhe pede o seu gesto
para longe
da nota artística.

Leio no seu rosto
um poema que aspira
a madrugada
uma ave que bate as asas
para iniciar o voo
a distância e a altura
inverosímil.

Um incêndio
consome-lhe o coração
e aquela destreza
de movimentos
tem uma única explicação
não encontra a calma
para as palavras
que dêem a expressão
e a ponte acrobática
ao dilema
que lhe dilacera a alma.

Lisboa, 27 de Setembro de 2014
Caros Vieira

Nadia Comaneci 1976

Suspiros...

Suspiros
ecoam pelas alcovas
quebram-se juras e silêncios
sublinham na penumbra
a dessidência dos destinos
apelos lânguidos da carne
o despertar das tempestades.
Lisboa, 27 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Oiço nos baldios...

Oiço nos baldios
da minha alma 
guizos e chocalhos
e a este bucólico
desassossego
estão de volta
os mesmos demónios
animais mansos
e fantasmas ancestrais.

Lisboa, 27 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

Este búzio...

Este búzio
a meus pés
a repetir a ladainha
das ondas e procissões
ecoa preces
no limite do desespero
e das marés.

Lisboa, 27 de Setembro de 2014

Carlos Vieira 

Este murmúrio...

este murmúrio
que persiste
no adeus de folhas ressequidas
este triste serpentear
de um regato
a trautearem o efémero
um prenúncio
de Outono

Lisboa, 27 de Setembro de 2014


Carlos Vieira

Palavras afiadas



Confesso-vos
que tenho uma inexplicável
afeição pela palavra
lâmina
nomeadamente
se forem de dois gumes
da sua competência
de penetrar
na substância.


Não que nutra
reverência
seja para mim
um especial fetiche
ou que subsista
medo ancestral
por facas ou faquires.

Não tenho
um ódio visceral
a quem esconde
o punhal sub-reptício
na ilharga da penumbra.

Nem me assola
qualquer memória
de antro ou cave ou beco
de faca na liga
ou  coriscante centelha
da navalha cigana
de Lorca.

A minha mão nervosa
ou a minha circunstância
nebulosa
podiam até invejar
o extirpar cirúrgico
do bisturi
não são
na minha óptica
causa suficiente.

Tenho ainda
a mesma aversão
que qualquer mortal
às baionetas caladas
das guerras surdas.

Não digo porém
que não me inspira
particular ternura
este amolador
que irrompeu e feriu
a madrugada
da cidades adormecida
e com seu realejo
reabriu cicatrizes
que há muito
julgava curadas
e esquecidas
nas brincadeiras de criança.

Infância
essa ponta e mola
que salta inoxidável
para nos defender
da intolerância
dos tempos.

Esse canivete suíço
com que descascámos
os frutos
aparávamos
o conhecimento.

Nas papilas
da palma da mão
podemos encontrar
na confluência dos deltas
o gume das lâminas
das unhas e de palavras
afiadas
que acompanhavam
até à eternidade
juramentos
de sangue e de amor
e pequenos golpes
e incidentes.

Lisboa, 27 de Setembro de 2014
Carlos Vieira





sexta-feira, 26 de setembro de 2014

De tanto olhar o firmamento ganhei asas


Estarei velho
deixei de contar as estrelas
as mais distantes 
já não as enxergo
invejo-lhe a incansável
intensidade
não existem
estrelas decadentes
só buracos negros
abertos no espaço sideral
e constelações que assistem
impotentes
as exéquias das partidas
das ausências
ao silenciar da luz
estarei velho
tornou-se
mais difícil carregar
este memorial
este céu
para consumo interno
onde continuam
tantas estrelas
desaparecidas
e ao mesmo tempo
cuidar
das supernovas
da minha vida.
Lisboa, 26 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

o beijo da vida


a vida é um sortilégio
na eternidade interrompida
pelo teu beijo

Lisboa, 26 de Setembro de 2014

Carlos Vieira


Jean-Leon Jerome "Pigmaleão e Galatea"


Henri Toulouse-Lautrec "O beijo na cama"


"O Beijo" Auguste Rodin


"O Beijo " Gustav Klimt



Man Ray "Rayograph Kiss"


"Dia de Aniversário" Marc Chagall


Constantin Brancusi "O Beijo"


"Os amantes" René Magritte


"O Beijo" Pablo Picasso


"Roy Lichtenstein "Kiss-V"


http://flavorwire.com/149349/the-10-best-art-kisses-of-all-time

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Poema do café da manhã



Peço uma italiana
e um bolo fofo de Belas
sou o único cliente do café
o primeiro talvez
vou dedilhando versos brancos
rimas desencontradas
e metáforas duras de roer
tento libertar-me  da rede tentacular
das palavras que gorjito
instintivamente
 depois
por um sistema de vasos comunicantes
vou alimentar o poema
da linfa das ideias e da ternura
quero fechar
com chave de ouro
deixar um ditirambo
e uns cêntimos de gorjeta.

Lisboa, 25 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

Pequenas tempestades



Ontem Lisboa
era o caos
nas suas pequenas inundações
nesta impreparação
para as tempestades
e desvarios
neste lusa vivência
de carregar a dor
e a idade
no limite da paciência
ter de reinventar o amor
de não sabermos voar
e dos pássaros
só transportarmos
cantos e fragilidade.

Lisboa, 23 de Setembro de 2014-09-25
Carlos Vieira




terça-feira, 23 de setembro de 2014

Escrevinhar



Escrevo
até ficar a memória
em carne viva
até precisar
de uma transfusão
de sangue novo
e sol
depois renovo este ímpeto
de escrever
contra o muro da solidão
não me conformo
oiço outra vez
este eco ancestral
das noites de cristais
e de grilhetas
de forno na garganta
este cheiro a sal no porão
de escravos
e de estrelas na lapela
a levantarem-se do chão.

Lisboa, 24 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

A garça e o carneiro caraculo



Registo
a partir desta janela
de manga de alpaca
na narrativa da várzea:
a garça altiva
que viaja no dorso
de um carneiro caraculo,
a metáfora subversiva
da pose de poeta
a recitar
a duas vozes
 poesia efémera
e leve
sem açúcar.

Lisboa, 24 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



Norman Share Photography

domingo, 21 de setembro de 2014

Seu corpo teu fogo sem artifício


Foguetes
a estrelejar
e a iluminar
a nudez ávida
do teu corpo
no ardor
da urgência
ao longo
da húmida erva
cúmplice
que esconde
aquele amor
proibido
numa aldeia 
do interior

no espanto
do rosto dela
afogueado
nesta noite
de um amor
que os consome 
em lume brando
só do encontro
no seu olhar
toda terra treme
e há vulcões
prestes a entrar
em erupção
e eles ficarão
a descoberto

ai perto
a algazarra
dos garotos
na sua pueril
brincadeira
de ir apanhar
as canas
e ainda se ouve
o resfolegar
de uma cansada
concertina
está a acabar 
o arraial
não vão deixar
de dançar
de mão dadas
contra a lonjura
e o desconhecido

amansa
lentamente
o estertor
dos corpos
vão ver-se
de novo amanhã
haverá  
de novo a festa
vai estrelejar
dentro de si
ele irá
levar-te consigo
até às nuvens
ali vão estar
definitivamente
protegidos
de qualquer
indiscrição.

Lisboa, 21 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



“Kissing” por Alex Grey

sábado, 20 de setembro de 2014

do pecado da poesia todos os dias me confesso



Chega uma altura na vida
que tudo se esboroa
e se desfaz
no pó puro e duro

resta-nos 
apenas a fidelidade 
à poesia
para quem acredita

um pouco de pó
de poesia
misture bem 
é de consumo imediato

pouco elaborada
apenas rugas 
versos na pele do dia a dia
na génese ingénua teoria

poesia na hora
de uma solidão
que não contamos
que não contávamos.

de pequenas coisas
imprecisas memórias
derrotas e vitórias
a que sobrevivemos

de erros e desenganos
que soçobram
à dura luz 
do ardil da razão

neste tempo
ousar o poema
acompanhado do gesto 
épico de ternura.

Lisboa, 20 de Setembro de 2014
Caros Vieira

Pequena crónica contra a cegueira



O gato persa estendia a pata e jogava o novelo na varanda da vivenda, onde o sol se demorara, vislumbrei na porta de madeira o número 48 dourado.
Após chamar e não tendo resposta, entrei, segui o fio da meada, aposento a aposento, que adivinhei quase abandonados, página a página, desloquei-me como um felino até a origem da lã turquesa, percebendo que no final o gato continuava a brincar, enquanto na outra ponta, alguém ou algo a segurava, num dilema entre a firmeza e a imobilidade.
Fui-me debatendo entre um leve cheiro a mofo, longínquas iguarias e uma luz coada, onde se reflectia, uma miríade de poeiras suspensas.
Por fim, a um canto da sala, junto a uma janela em contraluz, um vulto que logo constatei esgrimia agulhas de tricot, embora um pouco encadeado, percebi que o fio turquesa, iria até junto do coração da silhueta.
Fixei os olhos no chão e fiz o exercício de me habituar à penumbra, à solidão secular dos objectos e dos móveis antigos, fui-me aproximando com o cuidado de não quebrar a frágil harmonia do momento, nem causar algum receio e até pânico, àquele que seria o meu próximo interlocutor.
A personagem estava sentada num maple, em oblíquo em relação à minha posição, parecia estar à minha espera, enquanto continuava a tecer a sua cruzada, pareceu-me ouvir-lhe uma breve interjeição, um desvio subtil da sua cabeça coroada de prata na minha direção, não me vendo, não poderia ver-me.
Afinal foi um homem que puxou o fio, seria mais uma sua artéria, com o qual articulava a sua precária serenidade, encarou-me mais fixamente, eu era para ele o que sempre seria, apenas um desconhecido, o persa entretanto aproximou-se, na sequência de um sinal para mim imperceptível, este transmitia-lhe a exacta noção do perigo.
Decidiu então falar e as palavras tinham todas o peso exacto, uma voz luminosa que parecia vir dos infinitos corredores do silêncio e das sombras.
Disse num tom onde se insinuava alguma angústia e desespero:
“ - Então é o senhor que vai levar os livros. Para mim, vai ser grande a perda, pois muito embora estarem na minha cabeça, vai ser pior no entanto, será a sua ausência, deixar de ouvir a sua voz, sentir o seu aroma, desfolhá-los, já que não os pude ler, sentia porém que o seu fim, não deveria este destino comum, de também eles, ficarem cegos entre estas paredes, nestas prateleiras!”

Lisboa, 20 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido de um gato que não é persa

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Estilo de vida



Olho para esta gente
as minhas gentes
e por aquilo que me parece
estão contentes
consigo próprios
não tem outras ambições
já atingiram
todos os seus objectivos
promoção, casa, carro e filhos
por esta ordem
ainda que a custo
de cruéis mensalidades
e hipotecas até ao fim da vida
o que é decisivo
é a taxa de esforço
todos reféns
a beberem do mesmo fel
também todos
cada vez mais circunscritos
por si próprios
mais circunspectos
cada vez mais longe
da poesia
e do sem limite
vencidos pela inércia
acomodados
neste estilo de vida
a prestações
e saldos e cupões
e seguros para fazer face
a qualquer acidente
desta vida moderna
e bancos a um juro
muito conveniente
sem viver acima
das possibilidades
sem darem o passo
para além da perna.

Lisboa, 19 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



Introspeção



Dias de pântano
e de medo
quanto mais me mexo
e protesto
mais me enterro
os sonhos
deixaram de ser
de acção
mas de hipóteses
de movimento
sonhos de voltar
a correr contigo.

Lisboa, 19 de Setembro de 2014
 Carlos Vieira


Psicanálise com gaivotas



Sento-me na esplanada
sinto-me no Inverno
sento-me na praia
as gaivotas andam numa roda viva
o empregado anda em câmara lenta
eu estou em ponto quase morto
há tempestade no mar
e em terra falta-me o ar
enquanto aqui estou sentado
numa destas mesas de plástico
que anunciam refrigerantes
vem uma gaivota confraternizar
temos sempre umas migalhas
de qualquer coisa
para dar
para estas ocasiões
e voou para outra freguesia
repetiu seu canto minimalista
ter-me-á agradecido
e dito que na sua experiência
de espuma e naufrágios
estava farta de tragicomédias.

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Foto retirada do site WWW.tripadvisor.com

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

avisto-te...

avisto-te
algures sentada
na primeira carruagem do metro
que inicia a marcha
metro a metro te vou perdendo
outra vez
depois entras de novo
nas trevas do túnel
onde tens permanecido

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

bato à porta...

bato à porta
reconheço os teus passos
afasto-me à pressa
não estou preparado para te rever
o poema não suporta
que tu possas bater-me
com a porta

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Esplendorosos...

esplendorosos
cardumes de sardinha
fazem-me crescer água na boca
já os cardumes de estrelas
deixam-me de boca aberta

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

um peixe ...

um peixe
foi à boleia da corrente
outro contra-corrente
sonham com uma vida de águas calmas
de grandes lagos

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

odeia...

odeia
todos os "voyeurs"
e a transparência
o peixe
que no aquário sem cessar 
anda às voltas
Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Caros Vieira

na banca olham-nos...

na banca olham-nos
em êxtase
os peixes prateados
os mais fresco no mercado
espreito-lhe as guelras
e fico esclarecido
no máximo morreram
anteontem

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Peixe-espinho...

Peixe-espinho
na praia apinhada
todos nós podemos morrer
envenenados
nas próximas 24 horas.

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Peixes espreitam...

peixes espreitam
por dentro dos muros de tijolo burro
testemunham num silêncio
de frágil cerâmica
a imensa ternura
do desconhecimento
e a raiva surda da ignorância

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Epílogo


Rubra rosa
emerge na cinza do céu
pássaro de âmbar espantado
lacre derramado
no texto em cobalto
de tinta permanente
onde oiço o mar
num apontamento de azul
junto ao ouro dos teus pés
acende-se uma espiral
de búzios
e no silêncio carmim
dos teu comovidos lábios
chegámos ao fim.

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Há margem



Fui pelo cais adiante
em busca de um outro final
um pouco menos decadente
em Vila Real de Santo António
ia vagueando contra o vento
contra corrente
e todo o rio Guadiana
ali acolá o marulhar dos barcos a remos
há séculos
estacionados em espinha
sobrevivem
de cores desbotadas
e madeira corroída
as gaivotas
mantinham-se à horas
imperturbáveis de sentinela
a este fim de Inverno
sem aderirem à dança das marés
instala-se
um cheiro intenso a peixe assado
percebia-se ter origem
nos barracões em ruínas
do outro lado Ayamonte
o declinar de um sol envergonhado
a que sucedeu
um chumbo de céu
os meteorologistas dividem-se
entre estarmos
neste dia de fim do Verão
ou no princípio do Outono
ali ao lado erguem-se
surreais esqueletos
de barracas
e no ar o lixo dos plásticos
de um final da feira
há um rumor de tempo
a esgotar-se
que acelerou
inapelavelmente
com o fim das fronteira.

Vila Real de St.º António, 17 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Paisagem a branco e preto com leve apontamento de azul


Ali estou atento
ao bando de aves brancas
a esvoaçar
em formação
atento
ao vagar das vacas
brancas e pretas
que pastam
desencontradas
atento
ao desanuviar
de uma enorme
nuvem negra
que ruma a sul
por cima
dos cabos de alta tensão
de azul elétrico
o resto é paisagem
de onde fugiu a cor.
Lisboa, 17 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Um poema por duas lágrimas apenas


Duas lágrimas
correm por um só olho
cosmologicamente
para o canto
30ºgraus de ângulo
de um vértice triste
de não sei que dor
é preciso dar tempo
ao tempo que subverte
para as decompor-
Duas lágrimas
descem pelo seu rosto
contornam o argueiro
precipitam-se
até à foz
na comissura direita
da sua boca
onde as soube
sem gosto
onde irão com certeza
embargar
a sua voz já rouca.
Tanto
por tão pouca
cousa.

Lisboa, 15 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Conserto de bolso


Sentado no café
escuto-lhe
o murmúrio das vozes
o tinir dos talheres
da louça
dos olhares
o ranger
das pernas
por debaixo das mesas
e de súbito irrompe
o vapor da máquina
depois regresso
aos ruídos mais etéreos
e faço de conta
que escrevo a quatro mãos
com acompanhamento
de voz
soprada ao ouvido
- por favor
fique com o troco!
- podia dizer-me as horas!
enquanto isso
ela vai dando corda
ao meu coração
eu derramo
um copo de água
na mesa ao lado.

Lisboa, 15 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Desobediência discreta


Tímido
foi o gesto
que lançou a semente
do mais eloquente protesto
flor intrépida
e sem estação
em segredo
ali bebeu teus lábios
a água fresca
e deles brotaram
beijos de arestas
e canções de frágua
neles ecoou
a palavra breve e soterrada
dos sábios
cuja memória
se reduz agora
a reflexos efémeros
como pássaros
que preenchem
os ramos da ausência
na penumbra das florestas
gestos tímidos
que tecem na luz
protestos veementes
à fugaz janela do tempo
seus olhos húmido
acenam delicados
o ponto cruz
por detrás da cortina
em que lhe sorriu
recorrente
a linha de fuga
em que se liberta
e o pensamento único
de onde a medo
deserta.
Lisboa, 15 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

domingo, 14 de setembro de 2014

Bambu solitário



era um bambu
agitado
tu sonhavas
um peixe pendurado
os seus poemas
eram suas folhas
lenços brancos
bandeiras a drapejar
sinaléticas
de um ritual do amor
gritos a extravasar
a fronteira do corpo
indícios
de uma guerra interior
de paciência chinesa

Lisboa, 14 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



Painting of a bamboo shoot by Drue Kataoka

sábado, 13 de setembro de 2014

Barco de papel


Há lugares assim
em que de repente
se levanta
uma pequena ondulação
que deformam o teu rosto
e afetam
o afecto do teu gesto
fica turvo
em suspenso
neste espelho de água
em Belém
só permanece
nítido e imaculado
e ainda hoje
está a navegar
aquele barco de papel
que saíu
das tuas mãos
e da minha falta de jeito
e de palavras
para te poder amar.
Lisboa, 13 de Setembro de 2014
Carlos Vieira


Pintura de autor desconhecido

Dedalus




Aqui me encontro
nesta encruzilhada
neste dilema
por isso estes versos
onde me confronto
com os passos perdidos
que não são só
da minha solidão
é apenas
mais uma primeira versão
de um desencontro
com o amor e a morte
neste fim do mundo
de onde vou partir
pois oiço a tua voz
que me chama
sigo os caminhos de pó
deste mapa antigo
onde distingo vagamente
a direcção
o meu tempo já tarda
entre o instinto e a razão
em cada taberna
em cada vagabundo errante
uma estrela e um insulto
uma pedra e um sorriso
um anjo da guarda
neste dédalo
de sinais e significantes
existiu ali e acolá
amenizando
o cansaço e o frio
o imenso significado
da garupa e do olhar
de um burro
ou de um cavalo
a quem afinal
sonegaram
lugar de relevo

labirintos e farsas 
para nomear
os falsos heróis

da História.

Lisboa, 13 de Setembro de 2014
Carlos Vieira




Daedalus and Icarus, antique bas-relief; in the Villa Albani, Rome


sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Embriagamento





Foi pelo intervalo
da chuva
o vento frio
costurava
nas esquinas
no fim
ao regressar
costuma
vir aos saltos
e o eco
das suas gargalhadas
estridentes
pode-se ouvir
na abóbada
riem
rimam
com as filigranas
pendentes
de água
que escorre
na copa
das árvores
e sucumbem
no néon
e na esquecida
eloquência
dos candeeiros
ou pode trocar-nos
as voltas
e rumar
pelo caminho
das pedras
no precário
exercício
de equilíbrio
etílico
dos regressos
aos magníficos
perfumes
que despertam
para as histórias
encantadas
ébrio
das primeiras chuvas.

Lisboa, 12 de Setembro de 2014
Carlos Vieira










'Matinee d'ivresse' (Morning of Ecstacy), de Tino Rodriguez, inspirado por Arthur Rimbaud

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Memórias de Afrodite



Parece que te estou a ver
na tua frescura erecta
surpreendente na sua entrega 
tempestuosa e vertical
depois mesmo quando
te descalçavas
sobre a terra negra
ias articulando
o teu gesto pausado
e natural
numa desenvoltura elegante
no meio da horta
como quem vai acalmar o mar
e ascender aos céus
na curva da tua cintura 
sobre os canteiros
de plantas aromáticas
adivinha-se a distância tensa
e ansiosa dos animais
um aroma que se confundia
com a resina dos pinhais
e para as aves da manhã 
tu eras a hora marcada
para regressarem
de novo à vida
podiam rever-te a sorrir
enquanto o ramo de hortelã
te aflorava das mãos 
tão lúcidas
e cheias de tudo e de nada
acesas 
de uma brancura insólita
momento de sofreguidão
em que de si
se esquecia
e se te vislumbrava
a vigiar a ternura das vagens
e a admirar os frutos
ou se olhavas para o céu
era porque 
no teu silêncio
germinava mansa sede
nos campos
em adoração
levantava-se 
o murmúrio do desejo
e o rumor de uma oração à chuva.

Lisboa, 11 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



 “Aphrodite” by William-Adolphe Bouguereau

Suores frios


Noites húmidas
deste suor 
sem explicação
ou pingo de amor
de emoção 
de roupa a secar
no corpo
que sem razão 
se consome
e se desfaz em rio
na febre
delta do vazio.

Lisboa, 11 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Havia em ti...

havia em ti
um pássaro livre
foi de tanto te amar
que pouco a pouco
te perdi
e o pássaro
de tanto ouvir
meu coração bater
ficou louco
desafinou seu canto

Lisboa, 10 de Setembro de 2014
Carlos Vieira


                                                       Pintura de autor desconhecido

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Outra vez o rio que passa na minha terra II



Naquele tempo
eu ia aprender a nadar
para o açude
o meu pai conduzia
a água no pomar
os motores de rega
ganiam como cães
na margem direita
e as cigarras
na outra margem
enquanto eu lutava 
contra a corrente
e em profundidade
descobria 
todos os estilos
quanto os silenciosos
peixes estavam 
mais perto
da eternidade.

Lisboa, 8 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

O amante ferroviário



Dois comboios 
passam tão rápidos
mecanicamente 
um pelo outro
e por mim
é tão perfeito
milimétrico
o seu desencontro
ou então conhecem-se 
de ouvido
da desolação
das curvas
e das planícies
tão cegos
nas idas e voltas
do mesmo caminho.

Lisboa, 8 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

Poema do amor com pés e sem cabeça



Beijar
os teu pés
teu maior desejo
nos meus lábios
o sabor do segredo
de cada um dos teus passos
fantasia deslumbrante
de ir pela tua vida fora
levantar-te
onde tu caíste
tu és a minha nuvem
eu nunca tive os pés no chão.

Lisboa, 8 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

O sol apanha os meus pés...

O sol apenas apanha os meus pés
que me levaram para a sombra
talvez um dia eu tenha um lugar ao sol
e regresse ao desassombro
dos dias
em que o meu olhar
beijava a tua nudez
de pés descalços.

Lisboa, 8 de Setembro de 2014

Carlos Vieira 

Ruídos de uma delicada burocracia



Oiço agora troçar
os pinheiro alpinos
insones
com seus rumores de prata,
neste fim de estação
vão-se despenhando
as flores etéreas
de um vago jardim
e os pássaros
com seus voos
de curto alcance
vão adiando a loucura,
são todos unânimes
contra os requerimentos
que vou alinhavando,
neste ofício
em que sou canhestro
manga de alpaca,
desesperado
entre o passado e o futuro
tantas vezes apátrida
do presente.

Lisboa, 8 de Setembro de 2014
Carlos Vieira


                                                     “Bureaucrat” de autor desconhecido