Este ano
o artigo primeiro
foi o teu olhar
onde reencontrei
aquela vertigem de assombração
que me deixava com falta de ar
esta pontada
que penetra no coração
devagar
depois o número dois
foi aquela mensagem subliminar
de um planeta que pode desaparecer
sempre foste melodramática
desde que gravito à tua volta
em terceiro lugar
a constatação de que da leitura de sinais
múltiplos e inquietantes
que há animais muito mais evoluídos
que muita gente
e de quem gostas mais
o que não é nada surpreendente
anoto numa outra rubrica
que este ano
cresceram o número de pobres
e daqueles que não tem
nunca tiveram nada para dar
digladiam-se as estatísticas
umas rezam que há mais nas esquinas
e outras nos cruzamentos
este ano têm menos para receber
pois muitos estão mais pobres
pelo menos agora saímos dessa pose soberba
da misericórdia do teu olhar
e sabemos melhor o que é isso
de não ter um mínimo de subsistência
um método pedagógico mais ortodoxo
num outro item dei a devida nota
de que há uma curiosa unanimidade
no perigoso avaliar dos deslumbramentos
que amenizam e nomeiam de farta a realidade
e enaltecem a pobreza da fição
apraz-me ainda registar
que foste de novo fazer voluntariado
sentes-te mais leve quando
vais ajudar os outros
olho agora para este documento
que faz prova da tua vida
coberto de carimbos de tinta permanente
azul e preta
passaporte para uma nova fronteira
da nossa existência
e que nada vale
este sudário encharcado do dia a dia
e de imaginário
continuam tristezas e cansaços
tudo se apaga cá na terra
os desmandos e a enorme incapacidade
de sermos racionais
quem te manda a ti sapateiro
gastar o que não tens
tu tinhas avizado
sempre foste muito mais prudente
e a indesmentível desgraça de tantos
vista à lupa através do crédito mal parado
apontado que ficou e sublinhado
mudas de conversa
mostras-me aquela estrela do mar
de quem devia acreditar
na filha que a foi buscar ao fundo
de si própria para te dar
continuas com essa colecção de coisas
que só para ti tem valor
por fim
para memória futura
apontas mais uma cicatriz
que um objecto doméstico te deixou
e neste inventário nenhuma referência
à tua contundente competência em ferir
aqueles que te amam
e tu ficares incólume
tu nunca te vais dar conta
tu és analfabeta
nesse jogo mortal
do deve e do haver.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira