Deixo-me
ficar aqui deitado
no fundo do mar
a ouvir-te
a tocar-te no âmbar
dos ombros
búzios
onde a sonhar
adormeci
as águas vivas
ascendem
almas penadas
errando
ávidas
pela superfície
das coisas
e pela espuma
dos dias
enfeitiçadas
pelo meu alaúde
com a luz
da manhã
vejo as sombras
passar
como se fossem
nuvens
ou serão
tuas mãos
inatingíveis
testemunho
a queda repentina
de outros náufragos
a borbulhar
ao meu lado
todos os dias
oiço o estrondo
de tantos
companheiros
caídos
sigo
sem ver o horizonte
os navios com suas quilhas
de rasgar a solidão
e remos aflitos
contra a corrente
estendo as mãos
devagar
de único Deus
que pode amainar
a tempestade
oiço
o ruído abafado
profundo
do tráfego
as buzinas
num estrépido
de incontida
emoção
nas areias movediças
da cidade
submersa
tudo se subverte
na música
minimal
das ondas
que se despenham
incessantemente
no ouro da praia
e por fim tudo
se submerge
e fica preso
à pesada âncora
do silêncio
o assobiar
das baleias
assinala o rumo
do seu enorme
coração
as conversas abafadas
obedecem
aos preliminares
dos grandes golpes
e dos pequenos gestos
com que devem amar
os peixes timídos
e resplandecentes
peixes translúcidos
no seu azul turquesa nómada
interlocutores
da utopia
e dos mistérios indecifráveis
que jazem
nos grandes abismos
esgueiram-se atónitos
perante a minha invulgar presença
submarina e atenta
à evidência sufocante
de não escapar à morte
os grandes predadores
rondam
na esperança
do sangue vermelho e quente
e da minha cumplicidade
de morto vivo
e exploro
a minha grande gargalhada
silenciosa
debaixo de água
respiro agora penosamente
acreditando
que o halo de luz que penetrou
nas águas salgadas
vai acender os candeeiros de sal
e de insónia
definindo definitivamente
a eternidade
dos contornos do teu corpo
que mergulhou corajosamente
até profundidades
onde a pressão
da ausência do amor
torna impossível
a humana existência
noto de novo em ti
o instinto animal
e a etérea presença
que te conduz
à serena aquiescência
é a tua voz
que a mim me seduz
barco à vela
que surges nua
à vista desarmada
no periscópio
do meu desejo
a contraluz
ou será
da falta de ar
que te atira
contra o recife
na apneia
de um desencontro
à superfície.
Lisboa, 29 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira
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