terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Amar em apneia

Deixo-me 
ficar aqui deitado
no fundo do mar
a ouvir-te 
a tocar-te no âmbar 
dos ombros
búzios
onde a sonhar 
adormeci

as águas vivas
ascendem 
almas penadas 
errando
ávidas 
pela superfície 
das coisas
e pela espuma 
dos dias
enfeitiçadas
pelo meu alaúde

com a luz 
da manhã
vejo as sombras 
passar
como se fossem 
nuvens
ou serão
tuas mãos
inatingíveis

testemunho
a queda repentina
de outros náufragos
a borbulhar
ao meu lado
todos os dias
oiço o estrondo
de tantos
companheiros
caídos 

sigo 
sem ver o horizonte
os navios com suas quilhas 
de rasgar a solidão
e remos aflitos 
contra a corrente
estendo as mãos
devagar
de único Deus
que pode amainar 
a tempestade

oiço
o ruído abafado 
profundo
do tráfego
as buzinas 
num estrépido
de incontida 
emoção
nas areias movediças
da cidade 
submersa

tudo se subverte 
na música
minimal
das ondas 
que se despenham
incessantemente
no ouro da praia
e por fim tudo 
se submerge 
e fica preso 
à pesada âncora
do silêncio

o assobiar 
das baleias
assinala o rumo 
do seu enorme 
coração

as conversas abafadas
obedecem
aos preliminares 
dos grandes golpes
e dos pequenos gestos
com que devem amar 
os peixes timídos
e resplandecentes

peixes translúcidos 
no seu azul turquesa nómada
interlocutores 
da utopia 
e dos mistérios indecifráveis
que jazem 
nos grandes abismos
esgueiram-se atónitos
perante a minha invulgar presença 
submarina e atenta
à evidência sufocante
de não escapar à morte

os grandes predadores 
rondam
na esperança
do sangue vermelho e quente
e da minha cumplicidade
de morto vivo
e exploro 
a minha grande gargalhada
silenciosa
debaixo de água

respiro agora penosamente
acreditando
que o halo de luz que penetrou
nas águas salgadas
vai acender os candeeiros de sal
e de insónia
definindo definitivamente 
a eternidade 
dos contornos do teu corpo
que mergulhou corajosamente
até profundidades
onde a pressão 
da ausência do amor
torna impossível
a humana existência

noto de novo em ti 
o instinto animal 
e a etérea presença
que te conduz
à serena aquiescência 
é a tua voz
que a mim me seduz
barco à vela 
que surges nua
à vista desarmada
no periscópio
do meu desejo
a contraluz
ou será 
da falta de ar
que te atira
contra o recife
na apneia
de um desencontro
à superfície.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

Sem comentários:

Enviar um comentário