Uma súbita iluminação, uma corrente de ar, o efeito de sopro, o clarão na árvore do medo,
os efeitos colaterais e o estrépito das sirenes.
As pernas e corpos pela terra e pelo ar, as estrelas e o azul do céu sangrando, a entrar pelo
sótão, as botas cardadas e tu sem respirar debaixo da cama.
O combustível no pavio é uma combinação dessa paz podre e do rosnar de ameaças com
escaramuças de permeio. Seguir-se-á, certamente, a declaração de guerra após aquele navio
ou antes um barco a remos, um avião de papel ou a desculpa de uma flor que furou o
bloqueio.
Oiço o assobio do vento na empena e o grito lúgubre na chaminé, o rufar dos tambores,
alguém a contar espingardas. A guerra bate-nos à porta e as crianças vão dormir para cama
dos pais, escondem-se debaixo dos cobertores, caso não tenham sido já todos alistados.
Há um rosto antigo que arde na campânula da candeia que cuida dos soldados feridos,
dos gazeados, neste imenso hospital de campanha faltou a eletricidade.
Todos já fomos atingidos e já ficamos às escuras, tivemos em tantas frentes. Agora,
recordando, também nós confundimos o amor e a luz com a compaixão de uma enfermeira.
Enquanto o Inverno se apodera das trincheiras, a água ferve na cafeteira.
Neste tempo de rações de combate, de comida fora de prazo, os soldados do pelotão aperta-
se-lhe o dedo no gatilho e no coração, enregelados.
As vítimas dos fuzilamentos também se lhes aperta o vazio e um irmão do outro lado da
barricada.
Junto aos muros e labirintos de tijolo das cidades sitiadas, todos agonizamos, comendo o pão
que o diabo amassou e bebemos café sem açúcar.
Entre as rugas de tantas tempestades e batalhas há olhos que cintilam de demência e alegria, outros que faíscam de raiva ou ardem nas lágrimas de fumo e de pólvora, as granadas cegas confundem-se com aves e o esvoaçar dos estilhaços dos sonhos, tornando impossível à mão gentil o amanhecer que procura.
Lisboa, 31 de Outubro de 2012
Carlos Vieira
bloqueio.
Oiço o assobio do vento na empena e o grito lúgubre na chaminé, o rufar dos tambores,
alguém a contar espingardas. A guerra bate-nos à porta e as crianças vão dormir para cama
dos pais, escondem-se debaixo dos cobertores, caso não tenham sido já todos alistados.
Há um rosto antigo que arde na campânula da candeia que cuida dos soldados feridos,
dos gazeados, neste imenso hospital de campanha faltou a eletricidade.
Todos já fomos atingidos e já ficamos às escuras, tivemos em tantas frentes. Agora,
recordando, também nós confundimos o amor e a luz com a compaixão de uma enfermeira.
Enquanto o Inverno se apodera das trincheiras, a água ferve na cafeteira.
Neste tempo de rações de combate, de comida fora de prazo, os soldados do pelotão aperta-
se-lhe o dedo no gatilho e no coração, enregelados.
As vítimas dos fuzilamentos também se lhes aperta o vazio e um irmão do outro lado da
barricada.
Junto aos muros e labirintos de tijolo das cidades sitiadas, todos agonizamos, comendo o pão
que o diabo amassou e bebemos café sem açúcar.
Entre as rugas de tantas tempestades e batalhas há olhos que cintilam de demência e alegria, outros que faíscam de raiva ou ardem nas lágrimas de fumo e de pólvora, as granadas cegas confundem-se com aves e o esvoaçar dos estilhaços dos sonhos, tornando impossível à mão gentil o amanhecer que procura.
Lisboa, 31 de Outubro de 2012
Carlos Vieira
“O Fuzilamento” de Francisco Goya
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