Ígneo, enquanto andava durante o
Verão passado, por terras calcinadas pela devastação dos incêndios, deparei-me
com este controverso adjetivo que tanto alude à natureza como à cor do fogo. Sendo
certo que, uma coisa pode não implicar a outra, contrariamente à expressão, “não
há fumo sem fogo”, fórmula popular que traduz uma estranha ressonância e
coincidência científica.
É ancestral a busca e preocupação
do ser humano por fontes de ignição, pelo despoletar o fogo, pois conhecer o
que está na origem do mesmo, foi sempre meio caminho, para percebermos os primeiros
passos desse homem que nasceu imaculado ou do louco incendiário, do homem que
brinca com o fogo e daquele outro que domina o mundo pelo seu poder de fogo ou,
tão-somente, do humilde residente das fogueiras e dos fornos, saltimbancos manipuladores
das fontes de calor, que moldam os resistentes materiais e os tornam cristais,
habitáveis, de uma beleza polida e quase eterna.
A “atração do fogo”, não pode ser
considerada, nem sequer uma derivação do “fogo que arde sem se ver”, pois neste
caso o ígneo poder faz de nós combustível, enquanto na primeira, o homem
provoca a combustão, ajuda a que a mesma se propague ou no mínimo, protagoniza
um qualquer Nero, em êxtase perante uma insignificante Roma, em chamas.
Não é só no meu imaginário que as
labaredas lavram histórias de tios-avós á lareira, desfiando um rosário de
heróis decantados em cofres e alcovas medievas, nesse crepitar de escaramuças e
de paixões dissidentes.
Contudo, foi nesse fogo lento e
na sedimentação dessa lava de estórias que se aperfeiçoou a liga, que nos
tornou mais firmes, aguentando as messiânicas correntes e deslizes, temperando
no coração um rumo demiurgo e mantendo-lhe a febre e o ponto de fusão, que nos
reinventa e eleva a cada momento, ao deflagrar do renovado conhecimento, exortando
corajosos gestos de misericórdia e humanidade.
Foram definhando as fogueiras que
sobrevoamos na infância, os dragões que nos davam a prevalência das florestas e
o fogo-de-artifício que dava início ao sortilégio estival, de dias dionisíacos
de festa.
Travestidos de novos modelos e roupagens,
passaram-se a fazer às escondidas os autos de fé iluminando tenebrosas masmorras
e estreitos labirintos de espírito, fustigando quem enfrentando as trevas, se
atrevia a alumiar a penumbra com o candeeiro queimando o óleo de esperançados discursos
e de generosas palavras sussurradas.
O inferno ardia nas fronteiras da
nossa prodigiosa imaginação, os mafarricos delatores em sulfúreos lugares evoluíam,
permaneceram refractários às línguas de fogo que os lambiam e flamejavam
archotes, tornando mais real a dimensão do homem e do seu inferno e mais relevante
o doce vegetar da sua sombra bruxuleante.
No entanto, todas aquelas
reflexões, se foram apagando e naquele campo de desolação, onde de pé, a
negritude dos troncos nus acusadores protestavam, a cinza que como um manto
cobria terra, não havia nada mais para arder, apenas o acaso do rescaldo de um
tempo de solidão, o amor tinha-se tornado num fantasmagórico fogo-fátuo.
Lisboa, 22 de Outubro de 2012
Carlos Vieira
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