terça-feira, 23 de outubro de 2012

Faúlhas



Ígneo, enquanto andava durante o Verão passado, por terras calcinadas pela devastação dos incêndios, deparei-me com este controverso adjetivo que tanto alude à natureza como à cor do fogo. Sendo certo que, uma coisa pode não implicar a outra, contrariamente à expressão, “não há fumo sem fogo”, fórmula popular que traduz uma estranha ressonância e coincidência científica.

É ancestral a busca e preocupação do ser humano por fontes de ignição, pelo despoletar o fogo, pois conhecer o que está na origem do mesmo, foi sempre meio caminho, para percebermos os primeiros passos desse homem que nasceu imaculado ou do louco incendiário, do homem que brinca com o fogo e daquele outro que domina o mundo pelo seu poder de fogo ou, tão-somente, do humilde residente das fogueiras e dos fornos, saltimbancos manipuladores das fontes de calor, que moldam os resistentes materiais e os tornam cristais, habitáveis, de uma beleza polida e quase eterna.

A “atração do fogo”, não pode ser considerada, nem sequer uma derivação do “fogo que arde sem se ver”, pois neste caso o ígneo poder faz de nós combustível, enquanto na primeira, o homem provoca a combustão, ajuda a que a mesma se propague ou no mínimo, protagoniza um qualquer Nero, em êxtase perante uma insignificante Roma, em chamas.

Não é só no meu imaginário que as labaredas lavram histórias de tios-avós á lareira, desfiando um rosário de heróis decantados em cofres e alcovas medievas, nesse crepitar de escaramuças e de paixões dissidentes.

Contudo, foi nesse fogo lento e na sedimentação dessa lava de estórias que se aperfeiçoou a liga, que nos tornou mais firmes, aguentando as messiânicas correntes e deslizes, temperando no coração um rumo demiurgo e mantendo-lhe a febre e o ponto de fusão, que nos reinventa e eleva a cada momento, ao deflagrar do renovado conhecimento, exortando corajosos gestos de misericórdia e humanidade.

Foram definhando as fogueiras que sobrevoamos na infância, os dragões que nos davam a prevalência das florestas e o fogo-de-artifício que dava início ao sortilégio estival, de dias dionisíacos de festa.

Travestidos de novos modelos e roupagens, passaram-se a fazer às escondidas os autos de fé iluminando tenebrosas masmorras e estreitos labirintos de espírito, fustigando quem enfrentando as trevas, se atrevia a alumiar a penumbra com o candeeiro queimando o óleo de esperançados discursos e de generosas palavras sussurradas.

O inferno ardia nas fronteiras da nossa prodigiosa imaginação, os mafarricos delatores em sulfúreos lugares evoluíam, permaneceram refractários às línguas de fogo que os lambiam e flamejavam archotes, tornando mais real a dimensão do homem e do seu inferno e mais relevante o doce vegetar da sua sombra bruxuleante.

No entanto, todas aquelas reflexões, se foram apagando e naquele campo de desolação, onde de pé, a negritude dos troncos nus acusadores protestavam, a cinza que como um manto cobria terra, não havia nada mais para arder, apenas o acaso do rescaldo de um tempo de solidão, o amor tinha-se tornado num fantasmagórico fogo-fátuo.

 

Lisboa, 22 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

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