sábado, 18 de julho de 2015

Na orla de um referendo



Deito-me à sombra 
de mim mesmo
e do chapéu de praia
incrédulo
depois de um mergulho
de alma lavada
esqueço as penas
e as divídas
de ouvido no chão
oiço o bramir
das pequenas ondas
a ressoar 
na filigrana das pedras
da beira-mar
agito sem orgulho
o branco e alguma gordura 
do meu corpo
perante o escultural bronze
da maioria do veraneante
profissional
a refulgir na areia
escuto o pulsar
do coração da terra
uma ou outra gaivota
as andorinhas do mar
e as crianças
cabeças no ar
vão fazendo a pontuação
a brincar
soltando grasnidos
de Verão 
rasgando frestas 
no céu azul
interrompendo
na praia
pequenos dramas
anónimos
no murmúrio da multidão
que se entrega
e paira
que descansa
e desmaia
enterram a cabeça na areia
numa indiferença olímpica
ao sim ou ao não
da tragédia grega.

Albufeira, 5 de Julho de 2015
Carlos Vieira

"Construindo unidade, suportando identidade"

Rafael Argullo

Renascimento


Não nasci ontem
sendo certo
que sempre me sinto
voltado ao contrário
na placenta da noite
no cerco da insónia
e todos os dias
a madrugada me corta
o cordão umbilical
dos sonhos
a lição da história
e me entrega
inapelavelmente
à fria manhã da realidade
todos os dias
renascendo
nos erguemos
sobre os meus
e os teus escombros
todos os dias
hei-de coar
da suavidade
dos tecidos
a luz emergente
do seu rosto
que por milagre
se anuncia
rasgando o véu
da memória
que te encerrava
nessa noite
longínqua.

Lisboa, 17 de Julho de 2015
Carlos Vieira



The Face of Humanity

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Eroticamente II


Amar-te
dedilhando
os últimos confins
da tua pele
onde o beijo discreto
da brisa da tarde
acendeu o desejo
desmesurado
de qualquer morte
resgatar-te.
Lisboa, 30 de Junho de 2015
Carlos Vieira


Andrew Wyeth Painting

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Eroticamente I


Sobe o bambu
devagar
o caracol
enquanto tu
crepuscular
desces
sobre
o jardim interior
por pequena fresta
sinusoidal
penetra fálico
agora
um raio de sol
em estertor final
tu minha bandeira
que se agita
nas entranhas
esplendor
de bambu
com reflexos
do percurso
de prata do caracol.


Lisboa, 25 de Junho de 2015
Carlos Vieira

sábado, 20 de junho de 2015

Análise superficial do hábito externo


Saber dos segredos
inconfessáveis da tez
aquela cor
de quem dá início ao Verão
dos pequenos eixos
rumos mais ou menos incisivos
cercados seixos de angústia
altos e baixos relevos
de um rosto de meia idade
observar com minúcia
o tricotado mínimo da pele
onde se urdiu o desejo
e ainda há pouco
se pressentia o coração
e onde agora
desvendados aromas
se libertam
se confundem
jardim profícuo
onde se tornou difícil
o acesso dos pássaros
e do olhar
da posição das mãos
pode-se adivinhar
o silício do medo
um silêncio pesado
que ainda ecoa
uma memórias dos passos
que antecederam

na prece
e na alegria
interrompida
e que desagua em delta
e resplandece
em vermelha contradição
pela estranha
cumplicidade dos poros
no território
de um corpo abandonado
sobre as ervas
numa nudez ebúrnea
em que uma única ferida
no seio esquerdo
borbotando
se pode confundir
a um botão de rosa
que se animou
e o ermo triângulo
do seu sexo fechado
a um desespero sem nexo
em decúbito dorsal
último reduto
daquela violenta solidão
que avança
vertiginosamente
para todos os interstícios
do agora cadáver
que ninguém
reconhece
página voltada
abandonada
à eternidade
evidência
de beleza breve
da morte
que se confunde
com o sono.
Lisboa, 20 de Junho de 2015
Carlos Vieira


Desenho de Harry Clarke

A pequena tragédia diária das palavras por dizer


Procuro
a palavra
que supere
toda ausência
o momento
em que dê voz
a toda a injustiça.
Procuro calar
aquela
que foi raiz
do desencontro
e a outra que fez
a húmida cintilação
de um olhar.
Procuro,
mas apenas
recolho fruta
apanhada do chão
só as palavras
ressequidas
gastas
e banais
me chegam
à boca.
Apenas
ao cuspir
as suas sementes
acredito
que é possível
colher
um outro amanhã
de novas palavras
que talvez
nunca conheça
e que se juntem
algures
a conspirar
uma outra crença
na humanidade.
Lisboa, 12 de Junho de 2015
Carlos Vieira

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Sem golpe de asa


Sempre os pássaros
a tecerem
entre o verde das árvores
e o azul do céu
imperceptível
rendilhado
de puro voo e canto
esquissos
do regresso à solidão
preenchida
de efémeros reflexos
testemunhos
eloquentes
que deslumbram
a sombra furtiva
de quem se aquieta
na réstia
de um pensamento
que se apaga
sem golpe de asa.
Lisboa, 11 de Junho de 2015
Carlos Vieira


Exercício gímnico


Faz da ponte
uma metáfora
e do pino
que se segue
um verso branco
que se espraia
na espargata
de mais uma estrofe
alicerce
de todo um poema
em pontas
que se levanta do chão
e num salto mortal
descreve
o indizível
e ganha asas
mais uma estrela
daquela noite
enexorável
em que a mim
me faltou a respiração
e a outros
inquietos
falta tantas vezes
a palavra
ou o pão
nesta ginástica
silenciosa
da vida
onde o sangue
pulsa pletórico
ou se esvai
e nos deixa
exauridos.
Lisboa, 27 de Maio de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 26 de maio de 2015

A ausência da tua palavra



Sofia de Mello Breyner Andresen

Oiço apenas o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua ausência.


A ausência da tua palavra


De volta
para as palavras
como quem regressa
à longínqua casa da infância
onde adquiriam
o peso dos pássaros.

Palavras
que descem à terra
no voo rasante
dos olhares
das carícias
e dos compromissos.

Garatujar
no plano inclinado
em busca do gesto subtil
da escrita inicial
epidérmica
as palavras.

Oiço-as
para além
do roçagar do aparo
a navegar
no tremeluzir
de um corpo
intenso
de um amor primeiro.

Palavras
que nos escapam
dos lábios
no momento crucial
em que perderam
o coração.

Palavras
como espinhos
escondidos
na sombra fresca
do perfume das rosas
numa ânsia de sangue
e no êxtase
dos secretos recantos
do teu corpo.

Palavras
pássaros atónitos de luz
na nascente
da ilusão de um oásis
que sacia toda a sede
e  lava o leito
já seco das lágrimas
e do sémen.

Palavras
para reinventar o silêncio
e ceder às tentações
toldadas
pela erosão do tempo
e impaciência.

Palavras
que no artifício da carta
e do sentimento
se foram apagando.
Os resíduos da tinta
permanecem
conjugam ainda o verbo
de um amor
que dizem
foi único.

Recolho
o perfume
e a áurea do suor
as impressões digitais
onde te reconheço
a olho nu.
Boquiaberto
fico sem palavras
para reconstruir
a intermitência
da tua ausência.

Lisboa, 26 de Maio de 2015

Carlos Vieira

segunda-feira, 30 de março de 2015

Pequeno apontamento para uma nuvem sem história


Nuvem
barco do nada
pensamento de algodão em rama
ancorada
na árvore do silêncio à sua beira
negando-lhe a comoção
e a profundidade
do azul límpido do céu
almofada
está ali ao de leve
e derradeira
nos seus cuidados paliativos
até ouvir serenar a respiração
e até ao sossego
dos domésticos utensílios
uma mão invisível pode empurrá-la
para longe
sem esforço
pode tornar-se numa gaiola de pássaros
coabitando
com estrelas indolores
ou pode desfazer-se em aguaceiros
e dar mais sentido
ao seu olhar húmido e nublado
e a água que corre
pelas rugas do seu rosto molhado
ser um delta agridoce de sentimentos
e ocasional alquimia
de gosto.
Lisboa, 30 de Março de 2015
Carlos Vieira


Fotografia de autor desconhecido

domingo, 29 de março de 2015

Eduardo Galeano - Vivir sin Miedo

Pássaros sem explicação


Reabre a ferida
ave exangue
que abre 
em leque
a cauda primaveril
deixa um rasto
de sangue
no itinerário
de fuga
da solidão.
Bate as asas
prepara-se
para outros voos
nas plumas
acendem-se reflexos
de uma nova
madrugada.
Dormem
as aves pernaltas
sobre um pé
e fazem-lhe o ninho
debaixo de asa
reféns
de um precário
equilíbrio.
No seu canto
noctívago
perpassa
o estrépito
da insónia
a rodeá-las
o incêndio
de um lago.
Voa
por entre
as nuvens
e o espanto
das estrelas.
Penas
são reticências
que pairam
depois do sopro
na ênfase de um beijo
sobre a ausência
do teu rosto.
Lisboa, 24 de Março de 2015
Carlos Vieira

Já se ouve...

já se ouve o caruncho
esse acústico rumor
por dentro das tábuas
que nos envolvem
na solidão definitiva
Lisboa, 25 de Março de 2015
Carlos Vieira

Um pensamento de translação


Fui buscar a miúda
mais nova à ginástica
eram 21h30 da noite
subimos o acesso
do estádio em caracol
aguardámos
o verde do semáforo
eu estava a morrer de fome
a Matilde comentou
“Pai, gosto muito da lua!”
olhei para o céu
ali estava o satélite natural
da Terra
em quarto minguante
eu fiquei radiante
das observação
da agilidade das palavras
do sinal que me fez parar
de toda aquela
translação!
Lisboa, 25 de Março de 2015
Carlos Vieira


quarta-feira, 25 de março de 2015

Pássaros sem explicação



Reabre a ferida
ave exangue
que abre 
em leque
a cauda primaveril
deixa um rasto
de sangue
no itinerário
de fuga
da solidão.

Bate as asas
preparasse 
para outros voos
nas plumas
acendem-se reflexos
de uma nova
madrugada.

Dormem
as aves pernaltas
sobre um pé
e fazem-lhe o ninho
debaixo de asa
reféns
de um precário
equilíbrio.

No seu canto 
noctívago
perpassa
o estrépido 
da insónia
a rodeá-las
o incêndio
de um lago.

Voa
por entre 
as nuvens
e o espanto 
das estrelas.

Penas
são reticências
que pairam
depois do sopro 
na ênfase de um beijo
sobre a ausência
do teu rosto.

Lisboa, 24 de Março de 2015

Carlos Vieira

sexta-feira, 20 de março de 2015

Mais do que o sorriso

O teu sorriso
a coroar teus lábios
envolvendo o  infinito
marfim dos teus dentes
a sobrevoar a avidez da pele
na sofreguidão dos mistérios
que vais desbravando o olhar
intercalado no sufoco da espera
os remoinhos na véspera do desejo
pássaros  pelo ar soltando-se do corpo
a desabrochar no vértice do teu sorriso
 depois da demente convulsão um sereno
regresso do pensamento a que te entregas
tão silenciosamente  como se tivesse a chegar
a Primavera.

Lisboa, 19 de Março de 2015
Carlos Vieira

https://www.youtube.com/watch?v=YXuB6md9zPk

O inexplicável pretexto do nómada



Regressa ao ponto de partida
dá meia volta e avança
destemido
mete-se por atalhos
opta por estradas secundárias
na pressa de chegar
ao nada
de desfrutar a paisagem
do renascimento
ou de fugir de fantasmas
dos vícios privados
que o perseguem
do crime que não cometeu
e de que pode ser
o principal suspeito
não sabe o que quer
mas sabe o que não quer
estás exausto
não pela distância que percorreu
mas pela ignorância
do que falta percorrer
da ausência de horizonte
sempre gostou de viajar
dos desafios
mas quando ao aqui chegar
ficou indisposto
face à indisfarçável incomodidade
de ter de se adaptar
aos fusos horários
à estranheza das línguas
à falta de vocabulário
ao ocaso do sabor familiar
em Roma sê romano
saudade de recantos
que conhece
como a palma das suas mãos
o calor das cores
a firmeza dos materiais
o ritmo
ora conturbado ora sonolento
das cidades
confunde-o
a brusca mudança de cenário
intimida-o
face à extensão do tédio dos campos
o que perdemos de vista
o que esquecemos
o silêncio conformado dos animais
e a inactividade recalcitrante
das árvores
incita-o ao regresso à origens
ao detalhe e à delicadeza
do ser sedentário
do ser leal
de novo este desespero
de estar sempre a meio caminho
no epicentro da solidão
e da fidelidade
e longe da terna alegria
da sua busca incessante
sem dúvida que não pretende ser
o homem que se acoita
que se agacha
na soez cobardia das sombras
gosta do gesto firme
da discrição
e da limpidez da dávida
cruzam-se com seus pensamento
a corrupção das estações
a matemática equidistância
dos bandos de pássaros
esclarece-lhe alguns equívocos
não dorme descansa
assaltam-lhe faiscantes memórias
de navalhas e de aromas
de estalagens e casa de pasto
onde param os camiões Tir
e camionistas de longo curso
está “on the road again”
por fora do seu tempo
duplo de não sei que vida
em que sofre a dobrar
estabelece pontes e compromissos
pedem-lhe cuidados acrescidos
sem contaminações
por isso um distanciamento
exige-se-lhe mais ponderação
escreve
como se tivesse tirado bilhete
de primeira classe
impregnados dos diverso momentos
e dos múltiplos sincronismos
as vogais e os fotogramas
e as janelas interpenetrassem-se
por vezes toldam-se
à velocidade variável e sentimental
do coração
que habita periferias e aldeias perdidas
esquecidas
já não se sabe se anda de passos em volta
ou se voltou para trás
ou para frente
nunca teve grande sentido de orientação
e nunca percebeu o segundo sentido das estrelas
atrai-o sistematicamente para o vazio
o seu norte magnético
depois existe esse enigmático
apelo do mar
a que não responde
primeiro por falta de tripulação
e depois de navio
volta que estás perdoado
trás o aroma do sal
ela sonâmbula está ali ao largo da vida
onde a deixaste incrédula
na verdade
nunca se foi embora
aponta essa lâmina de traição que fizeste
a ti mesmo
incapaz de sair desse círculo
desse Gulag
que te impede a entrega
definitivamente refém
de uma ancestral
e centrífuga
necessidade de evasão.

Lisboa, 20 de Março de 2015
Carlos Vieira


quinta-feira, 19 de março de 2015

A hora do lobo



Uiva
o vento
no desfiladeiro 
bate com os cornos 
no betão da minha rua
nas janelas desafinadas
e nos olhares desgastados
da insónia
por causa da merda do colchão
que já foi da espuma 
das noites.
O vento frio assombra
a respiração desencontrada
as mãos desamparadas 
no ângulo morto do lampião 
ao colo de tantas mágoas e intrigas
vítimas de tanto lavar da roupa suja
rostos transfigurados 
de tantos sonhos
e bebedeiras e crédito malparado
arrastados pelas águas 
salpicados pelas lama das ventoinhas
e de mandados de paradeiro
e entrincheirados nos medos 
e nas traições
presos na demência e nas raivas surdas 
e no penalty mal marcado
que os deixaram mais sós 
e mais lassos 
os nós da misericórdia 
deste tempo. 
Porra para este vento gélido  
de fim de Março
que desagua  
no final da minha rua,
sem dúvida
vou fazer dele uma espada
do gume da sua pureza 
e do seu riso sarcástico
avinagrado com um pouco de azedume. 
Posso ainda, 
com um pouco mais de imaginação
articular um feérico bailado 
de palavras
que nunca ouvi dizer
que só as ouvirá o vento
temperadas de suprema solidão.
Para acabar de vez 
com a cultura,
farei um melodrama 
onde persiste 
uma luz triste e crua
uma coreografia de saguão
e cabaret
com alicerces no eco do silêncio
e fios de cobre 
para os inúmeros fantoches e marionetas. 
e a nobre coexistência
da pobreza envergonhada.
Por fim, 
oiço neste zimbório  
as deixas da ruína 
daqueles que ainda resistem
depois de todo o sofrimento 
e os gritos arrancados a ferros 
dos que vivem a pão e água
e dos que sobrevivem 
com um pouco mais que isso
aqueles que mais calam
dos que vivem encadeados 
na luz de si próprios 
e dos que vivem nas trevas 
sem dinheiro para pagar a electricidade
sem esquecer  
aqueles que nunca tiveram voz
e agora já não tem fim do mês,
são estas as estrelas 
do passeio da fama 
e é essa a voz do vento do Deus 
que passam na minha rua.

Lisboa, 18 de Março de 2015

Carlos Vieira

domingo, 15 de março de 2015

Sedimentos


Pólen
aspirado
sobre mais uma página virada
onde a semente
da violência
num único verso
amainou
a cor do pó
veneno ou remédio
empalideceu
vestígio
de pão
e um pouco húmido
de dor
escondida
de pouco mais
que nada
pequeno lapso
anónimo
que foi depois
tempestade
ruína
grão de areia
na engrenagem
semente
de onde vai irradiar
a raiz da solidão
o átomo
de estrela caída
partícula
de pele e de suor
em frição
que depois secou
no grande celeiro
do tempo irrepetível
foi o incêndio
e a cinza
de um grito
que se apagou
transformado
em miríade de matéria
em suspenso
na esperança
e se tornou
mínima porção
de terra prometida.
Lisboa, 14 de Março de 2015
Carlos Vieira

Poema "Pacemaker"



Ouve-se o silêncio
o mínimo eco das palavras
que ficaram por dizer
a ausência subtil do gesto
a florir discretamente
no jardim interior
da solidão
existe ainda
num pensamento breve
a nuance de um perfume suave
pareceu-lhe reconhecer
no intermezzo
da luz velada do tule da cortina
da janela
a coexistência familiar
de uma precária tragédia
e uma leve sombra que lhe perpassou
pelo rosto
adivinhou-lhe
a trajetória do desvio num sentido
quase sentimental
traindo-lhe a independência do olhar
enfim por ali ficou
solteira
nesse abismo
de contracenar a sua arritmia
com o mundo
umas vezes teve a natureza do gato felino
a paciência e a quietude
quando se lhe pediria eloquência
e outras vezes apenas veemência vegetal
quando os tempos lhe exigiam
firmeza e atitude
agora permanece mais prostrada
nesse recôndito analfabetismo
do amor
resta-lhe a morte e a indiferença
e um pacemaker.

Lisboa, 14 de Março de 2015
Carlos Vieira






"Matter" by Angela Reily

domingo, 8 de março de 2015

A andorinha de azeviche...


A andorinha de azeviche
de um golpe fulminante
feriu de morte 
a manhã
com a cimitarra

das suas asas
desembainhadas
ficou a borbolejar 
a luz
silenciosa
esquartejada pelos muros 
e pela caliça 
no agonizar das casas térreas
onde se percebe
um rumor de artroses
e bicos de papagaio
a luz crua 
devolve-nos
a tristeza da ausência
das crianças
no ar 
há o mofo das arcas
a súbita andorinha negra
espalha a Primavera
pelos campos
das colheitas abandonadas
raros camponeses
atónitos
num gesto largo e generoso
ainda fazem voar
uma vaga de fé e de sementes.


Lisboa, 8 de Março de 2015
Carlos Vieira




sexta-feira, 6 de março de 2015

Limpa os olhos de fugida...



Desenho de Kathe Kollwitz

Limpa os olhos
de fugida
onde se pode 
ainda distinguir
a profunda humidade
de uma alegria breve
no entanto
no seu cabelo
desgrenhado
os pássaros
que desertaram
da guerra
dão-lhe ideias
fazem ninho
coro
na sua dor
inconsolável
confusos
na demência
que lhe desenha
o decote mais generoso
com que sai à rua
e invoca o seu filho
fora de contexto
disseram-lhe a frio
no seu coração
cresce o gelo
de sabê-lo
desaparecido
em combate
na vala comum
dos corpos
por identificar
chora pelo seu leite
e pelo sangue dele
ingloriamente
ambos derramados.

Lisboa, 2 de Março de 2015
Carlos Vieira


Ícaro me confesso


Falta-me o golpe de asa
e sobra-me
o que uns apelidam
de decência
outros a consciência dos limites
não tenho ataques de pânico
por enquanto
apenas ataques de asma
e essa claustrofobia dos novos tempos
das contas, das rotinas e das missões
e de alguma poesia.
Aproveito por vezes as correntes
das altas para as baixas pressões dos sonhos
e a vertigem dos gestos
a frontalidade das almas desbocadas
mas logo a temperatura do sol
a inacreditável solidão nos olhos das crianças
e a lâmina do frio e da fome
nos temperam a trajetória
e nos apressam a queda
Ícaros devolvidos à Terra
sem sonhos
e sem asas.

Lisboa, 6 de Março de 2015
Carlos Vieira

A Queda de Ícaro de H. Matisse

domingo, 1 de março de 2015

Contraponto crepuscular

Um menino 
corre a tarde toda,
interruptamente
a bola
corre de um lado 
para o outro.

O poeta 
vive atordoado
na preocupação
do rumo
antecipado
da bola,
se for 
para a estrada
pode
vir um carro...

O poeta 
deixou 
de ter assunto
e descansa,
depois da voz 
e da mãe tranquila
terem voado 
da janela,
chamando o rapaz,
a seguir correu
a persiana
e o poeta ficou
em paz.

Tudo aponta
para a mãe
o crepúsculo
aceso,
a contida
exuberância
dos insetos
que habitam
o princípio da noite,
um poeta 
nunca vive
com muitas certezas.

O poeta 
terá ficado cego,
nestas circunstâncias,
tal só acontece
se se aconchegou
perigosamente
à imperceptível
e sublime
resistência das cores
e dos materiais
deles ficando 
embriagado.

O poeta
estuda agora 
com minúcia
o saber incorporado
que dá alma aos objetos
e abandonou-se
à clausura
criada pelo vai e vêm
da sombra do pêndulo
suspenso 
sobre a solidão.

Esta noite viverá
da memória
de uma bola de futebol
da alegre chilreado
de um menino
que corre na relva 
do largo
e da voz fresca 
serena
daquela mãe 
emboscada
atrás da persiana
de alguma forma
também cega
e presa 
noutra solidão.

Lisboa, 1 de Março de 2015
Carlos Vieira

Pequenas loucuras e absurdos


I

Senta-se na esplanada
e pede um café 
insistentemente
abandona-o 
na mesa já frio 
e vai-se embora 
sem pagar
afogueada.

II

Chegou à paragem
e perguntou 
pelo autocarro n.° 16
um passageiro
disse-lhe que hoje domingo 
não passava
a senhora de meia idade
respondeu 
que só o iria apanhar 
na segunda-feira
depois de amadurecer
ideias 
e de planear
o destino e o fim
da viagem.

III

Foi comprar flores
pediu três rosas
do vermelho
dos seus lábios
e que dessem mais cor
ao rosa pálido
das suas mãos suaves
em rosa pálido.

Lisboa, 1 de Março de 2015


Carlos Vieira

Hora da visita



No serviço de neurologia
do Hospital de Santa Maria
cada palavra tem a beleza
de uma flor fora de estação
a frase em esforço conseguida
nos lábios pacientes
é sinfonia ou poema de luz
a iluminar os rostos familiares.

Lisboa, 1 de Março de 2015

Carlos Vieira

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Movimento de translação



Apenas
uma única palavra
em equinócio
por vezes rasa
outras vertical
devorada
por língua de fogo
boreal
enquanto se reacende
o murmúrio
do inédito desejo
em labareda
numa sede urgente
que desperta
subterrânea
num lençol
de água
o sonho
onde mergulha
a raiz de precária
que será uma papoila
dormideira
de coragem inútil
desfraldada
no início
do degelo da memória
para onde corre
a vertigem do sangue
dos inocentes
derramado
na imensa
superfície de neve
aí irrompem
tristes líquenes
no seu adejar
tímido
desajeitado
e saem a medo
as ideias
relutantes
e elementares
da quase eterna
hibernação
num frenesim
e tépida proximidade
de animais
solares.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira



Melodia Interrompida



Há horas
em que cresce
un frio
por dentro de nós
um íntimo arrepio
e nos sentimos nus
e sós
à mercê
mínimos
menores
te sentes um pouco
mais do que quase nada
traído
por um fio
não te podes
esconder
sem abrigo
incrédulo
perante
a ruína
do que acreditaste
e sem forças
Mais velho
para carregar
de novo
o fardo
repentinamente
tão pesado
desesperado
de amar
o amor
tão ausente
tão entrecortado
e sorris
perante
a normalidade
dos beijos mornos
tão habituado
e condescendente
e o cansaço
de esperar
e a espera
de exasperar
por outra estação
pelo fim
de mais um Inverno
que interrompa
os gestos timídos ou contidos
e as meias palavras
destes dias
e das noites
que nunca acabam.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira




Escultura Daniel Arsham

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Apesar do AVC ou por causa dele



I

Olho por ti
e lembro-me 
de ter visto contigo
Tudo O Vento Levou
no velho cinema das Furnas
com banda sonora
a ecoar
no telhado de zinco.

II

Não te esqueço
no Mercado do Rego
no deve e haver
da madrugada
contabilizando
a explosão de aromas
e sabores
acompanhados
de um galão escuro
e meia torrada
em pão caseiro.

III

Recordas-te
de levar as hortaliças
e a fruta
aos veterenários e tratadores
residentes humanos
do Jardim Zoológico
e no regresso 
ofereceste-me
um gelado Rajá
e saíu-me
um Franjinhas
de plástico
e andámos de gaivota.

IV

Não julgues
que me esqueci
das noites quentes 
de Verão
no Picadeiro da Nazaré
a resistir
ao mármore frio
do Estado Novo
não dormias
e não era por causa
do café
a tua preocupação
foram sempre
os outros.

V

Sei da tua solidão
pela vida fora
da grande desilusão 
de um primeiro 
e único amor
como podes lembrar-te
se foi há meio século atrás
ficaste refém
daquilo
em que acreditaste
da tua entrega
e nunca concebeste
atravessar 
de novo a dor
de te dares
e de te perderes
outra vez.

VI

Não me tentes
enganar
agora não vais desistir
antes de chegar
à meta
lembras-te de irmos 
ver a última etapa
da Volta a Portugal
na subida
da Calçada do Carriche
tão frágil
volta a fazer 
das fraquezas forças
os teus frágeis ossos 
da osteoporose
com suas bolsas de ar
podem permitir-te 
voar.

VII

Sei 
da tua entrega
a todos 
e a cada um de nós
da enorme presença
de espírito
quando ficaste sozinha
a tomar conta
da terna Penélope 
deficiente mental
tua irmã
que toda a vida
foi tecendo e cozendo
a sua inacessível
solidão
não sei com que número
de agulha
a linha era Âncora
se bem me recordo.

Escusas
de me olhar
como quem não percebe
já nos conhecemos
não julgues
que te deixamos
desistir.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

No crepúsculo...

No crepúsculo
de ferrugem
do fim de tarde
acendem-se efémeros
reflexos de quartzo
a meia encosta
da Serra dos Candeiros
a descoberto
com as últimas chuvas
os moinhos eólicos
são pássaros
pesados de mais
para levantar voo
eu faço de D. Quixote
desenganado.

Porto de Mós, 19 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

Poema para um primeiro beijo

Ali
para os lados
da Mira de Aire
nuvens de chumbo
entre mim e ti
a céu aberto
o amarelo torrado
do calcário
antecede a noite
o rio Lena
serpenteia
numa demência
ou ciúme
ou juventude
tardia
eu como tangerinas
sentado no mocho
do quintal
o castelo 
de Porto de Mós
derrama
suas duas torres
de verdete
na paisagem
e tu regressas
aos contos 
cor-de-rosa
no giz 
na ardósia
acendo sonhos 
hieróglifos
para ti
a preto e branco
ecoa na praça
solar
o teu primeiro beijo
apedrejado
no pelourinho
desse tempos
meu padrão 
de descobrimento
e nos arredores
a arengar
as rolas
nos pinhais
e as velhas 
nos portais
testemunhas
pouco credíveis
intriguista
da história.

Porto de Mós, 20 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

Embuste



Podia discutir-se 
se foi a fome
que o cegou
se foi o olho gordo
facto
o tordo arisco
caiu na armadilha
de visco 
lição
nem tudo 
o que luz 
é a azeitona
de azeviche
servida 
na bandeja
de prata 
da oliveira.

Porto de Mós, 19 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

Poema com magnólias

Poema com magnólias 

Oiço-a respirar
com dificuldade,
agitada
das coisas 
por dizer, 
entaladas
na garganta
-tu que sempre foste 
tão clara –
por dentro de mim
é directa a proporção,
a surpresa
com que aumenta
o meu batimento
cardíaco
e um estremecimento
perturbador,
uma calada
preocupação.

Olho pela janela
lá fora
e vou pela tua mão,
pela vereda
de um outro tempo,
em que nos agachámos 
a observar
com a contida
respiração 
uma raposa
de ficção,
atenta ao volume
do restolhar
do coelho, 
nas folhas secas
do bosque ali perto,
pelo princípio
do outono.

De qualquer forma,
pressente-se
o crepitar 
e a ténue chama
de vidas,
presas por um fio,
por um momento
olho para ti,
nos teus olhos
pequeninos
focados no firmamento
e eis que desce 
uma lágrima,
a última gota 
que me afoga.

Tudo isto 
devia ser apenas
uma gripe, 
fruta da época
e não é essa história
da extensa lesão
no parietal direito,
voltaste 
a jogar às escondidas
sem ter idade 
para isso,
neste tempo
tão propício 
ao desencontro.

Não minha amiga,
assim não vale
ires esconderes-te 
no hospital
e só te poder encontrar 
à hora da visita. 

Lembras-te 
que a brisa denunciou
a raposa
e que ainda 
vem aí a Primavera
que temos 
muitos passeios
por dar
pela alameda
das magnólias
que neste poema 
plantei para ti.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira