sexta-feira, 20 de março de 2015

O inexplicável pretexto do nómada



Regressa ao ponto de partida
dá meia volta e avança
destemido
mete-se por atalhos
opta por estradas secundárias
na pressa de chegar
ao nada
de desfrutar a paisagem
do renascimento
ou de fugir de fantasmas
dos vícios privados
que o perseguem
do crime que não cometeu
e de que pode ser
o principal suspeito
não sabe o que quer
mas sabe o que não quer
estás exausto
não pela distância que percorreu
mas pela ignorância
do que falta percorrer
da ausência de horizonte
sempre gostou de viajar
dos desafios
mas quando ao aqui chegar
ficou indisposto
face à indisfarçável incomodidade
de ter de se adaptar
aos fusos horários
à estranheza das línguas
à falta de vocabulário
ao ocaso do sabor familiar
em Roma sê romano
saudade de recantos
que conhece
como a palma das suas mãos
o calor das cores
a firmeza dos materiais
o ritmo
ora conturbado ora sonolento
das cidades
confunde-o
a brusca mudança de cenário
intimida-o
face à extensão do tédio dos campos
o que perdemos de vista
o que esquecemos
o silêncio conformado dos animais
e a inactividade recalcitrante
das árvores
incita-o ao regresso à origens
ao detalhe e à delicadeza
do ser sedentário
do ser leal
de novo este desespero
de estar sempre a meio caminho
no epicentro da solidão
e da fidelidade
e longe da terna alegria
da sua busca incessante
sem dúvida que não pretende ser
o homem que se acoita
que se agacha
na soez cobardia das sombras
gosta do gesto firme
da discrição
e da limpidez da dávida
cruzam-se com seus pensamento
a corrupção das estações
a matemática equidistância
dos bandos de pássaros
esclarece-lhe alguns equívocos
não dorme descansa
assaltam-lhe faiscantes memórias
de navalhas e de aromas
de estalagens e casa de pasto
onde param os camiões Tir
e camionistas de longo curso
está “on the road again”
por fora do seu tempo
duplo de não sei que vida
em que sofre a dobrar
estabelece pontes e compromissos
pedem-lhe cuidados acrescidos
sem contaminações
por isso um distanciamento
exige-se-lhe mais ponderação
escreve
como se tivesse tirado bilhete
de primeira classe
impregnados dos diverso momentos
e dos múltiplos sincronismos
as vogais e os fotogramas
e as janelas interpenetrassem-se
por vezes toldam-se
à velocidade variável e sentimental
do coração
que habita periferias e aldeias perdidas
esquecidas
já não se sabe se anda de passos em volta
ou se voltou para trás
ou para frente
nunca teve grande sentido de orientação
e nunca percebeu o segundo sentido das estrelas
atrai-o sistematicamente para o vazio
o seu norte magnético
depois existe esse enigmático
apelo do mar
a que não responde
primeiro por falta de tripulação
e depois de navio
volta que estás perdoado
trás o aroma do sal
ela sonâmbula está ali ao largo da vida
onde a deixaste incrédula
na verdade
nunca se foi embora
aponta essa lâmina de traição que fizeste
a ti mesmo
incapaz de sair desse círculo
desse Gulag
que te impede a entrega
definitivamente refém
de uma ancestral
e centrífuga
necessidade de evasão.

Lisboa, 20 de Março de 2015
Carlos Vieira


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