Uiva
o vento
no desfiladeiro
bate com os cornos
no betão da minha rua
nas janelas desafinadas
e nos olhares desgastados
da insónia
por causa da merda do colchão
que já foi da espuma
das noites.
O vento frio assombra
a respiração desencontrada
as mãos desamparadas
no ângulo morto do lampião
ao colo de tantas mágoas e intrigas
vítimas de tanto lavar da roupa suja
rostos transfigurados
de tantos sonhos
e bebedeiras e crédito malparado
arrastados pelas águas
salpicados pelas lama das ventoinhas
e de mandados de paradeiro
e entrincheirados nos medos
e nas traições
presos na demência e nas raivas surdas
e no penalty mal marcado
que os deixaram mais sós
e mais lassos
os nós da misericórdia
deste tempo.
Porra para este vento gélido
de fim de Março
que desagua
no final da minha rua,
sem dúvida
vou fazer dele uma espada
do gume da sua pureza
e do seu riso sarcástico
avinagrado com um pouco de azedume.
Posso ainda,
com um pouco mais de imaginação
articular um feérico bailado
de palavras
que nunca ouvi dizer
que só as ouvirá o vento
temperadas de suprema solidão.
Para acabar de vez
com a cultura,
farei um melodrama
onde persiste
uma luz triste e crua
uma coreografia de saguão
e cabaret
com alicerces no eco do silêncio
e fios de cobre
para os inúmeros fantoches e marionetas.
e a nobre coexistência
da pobreza envergonhada.
Por fim,
oiço neste zimbório
as deixas da ruína
daqueles que ainda resistem
depois de todo o sofrimento
e os gritos arrancados a ferros
dos que vivem a pão e água
e dos que sobrevivem
com um pouco mais que isso
aqueles que mais calam
dos que vivem encadeados
na luz de si próprios
e dos que vivem nas trevas
sem dinheiro para pagar a electricidade
sem esquecer
aqueles que nunca tiveram voz
e agora já não tem fim do mês,
são estas as estrelas
do passeio da fama
e é essa a voz do vento do Deus
que passam na minha rua.
Lisboa, 18 de Março de 2015
Carlos Vieira
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