domingo, 21 de agosto de 2016

Desculpe mas preciso de respirar


desculpe
mas esta é uma zona de não fumadores
diz o barman
com o olho azul imperturbável
a boiar no gin
enquanto converso com um amigo meu
que há muito não vejo
e que decorava alegremente
o ambiente com argolas de fumo
e recordava-me vagos sofás
de veludo vermelho
desculpe
mas nesta zona não pode falar
pode-se ciciar
é o mais longe que se pode ir
e os vestidos de noite das senhoras
podem varrer o chão
num roçagar mais ou menos
interrompido
alguém pode deitar o lixo
e a vã humanidade
para debaixo da carpete
para longe de si
desculpe
pode escrevinhar um verso
com rima com ritmo
com o peso que lhe permita o voo
descontando a intensidade da corrente de ar
em que se perceba que queimou as pestanas
para o levantar
a cinquenta pés de altura
para chegar aqui
não se pode sacar de um poema
de versos brancos
e pé quebrado
com um toque modernaço
e desatar a incomodar
os nossos sofisticados clientes
desculpe
mas há espaços próprios para poesia
e momentos
por exemplo nesta zona é proibida
não rima
com um belo Cohiba
não se podemos dar a esses luxos
de demonstrações excessivas
de sensibilidade
a secretas e subversivas alegrias
não damos tréguas ao absurdo e inexplicável
e temos uma política de contingência
e condicionamento
de evitar o contágio dos instintos
desculpe
mas aqui no nosso clube
abominamos
o que é controverso
e não contemporizamos
com discussões serôdias ou de detalhes
estamos imbuidos
de uma curiosidade tranquila
funcionamos em equipa
com incentivos
estamos todos no mesmo navio
a remar todos para o mesmo lado
e quem não é por nós
é contra nós
desculpe
mas não pode entrar de ténis
são normas da casa
o saber estar e a contenção
o beber de uma forma moderada
a apresentação
conta muito para nós
saber comportar-se
não toleramos
o livre arbítrio
desculpe
optar por esse abordagem
tão direta e linear
sabemos
que é um pouco perverso
o entendimento
mas a eficácia
o não perder tempo
a máxima racionalização de recursos
impõe-nos
um certo distanciamento
perante algumas minudências
de personalidade
e de ocupação de território
desculpe
mas aqui não é permitido o beijo
nem outras manifestações de afeto
não é próprio
este é um local de respeito
e de simpatia velada
e subtilezas
temos que lhe pedir
que se contenha
ou que abandone
o estabelecimento
desculpe
mas não pode tirar fotografia
nem flashs
preservamos o ambiente muito peculiar
o controlo científico
para que a exposição
apresente as melhores condições à arte
de que nos orgulhamos mostrar
preservamos
que os visitantes não fiquem afetados
não se intimidem
nem fiquem encadeados
a razão está acima de tudo
desculpe
mas o contexto era muito adverso
pelo que aí pode encontrar
a explicação cabal
não podemos fazer mais nada
não nos estamos a furtar
ás nossas responsabilidades
gostaríamos muito de poder satisfazê-lo
esse não é esse o nosso “core"
a nossa área de negócio
Lisboa, 3 de Maio de 2016
Carlos Vieira

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