domingo, 21 de agosto de 2016

Diário do discreto cidadão


Fazia tudo
com muita reserva
não gostava de dar nas vistas
e tal era muitas vezes confundido com timidez
no entanto a sua vida sempre se alicerçou
na ousadia e na coragem silenciosa
no gesto subtil de misericórdia e não na astúcia
não no ardil sibilino mas na delicada atenção
nessa discreta generosidade
sopesava que fosse mínima a presença
que a sua sombra não o denunciasse
inventava a ausência em cada passo
era meticuloso e não descuidado
sem pisar ninguém deixava que a sua palavra
se espraiasse luminosa como o ar
que se respira com ela criava abrigos
para os que fugiam das tempestades
acendendo um farol de rara lucidez
sem que se pusesse em bicos de pés
do seu olhar deprendia-se uma alegria contagiante
e uma tábua de salvação
adivinhava-se uma serenidade nunca resignada
com uma pincelada de tristeza solidária
saía com a mesma discrição
de quem entrara e sem deixar rasto
que se notasse ou vazio inquietante
apenas um perfume de inequívoco bom senso
ninguém se apercebera que se quebrara
a completetude do círculo ou que a corrente de ar
pudesse perturbar aquela consertação
das solidões e vacuidade ali reunidas.
Lisboa, 8 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Homem em Azul, Pablo Picasso

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