I
Poderia estar aqui emboscado
a ouvir tudo o que a noite
nos esconde
ou nos trás.
O que nos contam
os insectos breves
na sua voz mínima.
Sintonizando
de antenas no ar
nas longínquas frequências
os passos de fantasma
dos que nunca dormem
dos que nunca se ouvem
dos que ninguém ouve.
II
Poderia ser o cão a ladrar
daqui à lua
como quem atira um verso
que lhe devolve em osso.
Se para responder
se aproximasse
era lançar-lhe o laço
era prendê-la a um pinheiro.
Só a libertaria se ela aqui
a pé juntos jurasse
nos deixar
todo o seu silêncio de prata
com que de longe
nos provoca
e os amantes infelizes
passariam a destilar
um luar de resina.
III
Poderia estar aqui
a ouvir o motor de automóvel
que se afasta
e outro que se aproxima
as luzes que se perdem
outras que me ofuscam
o piso escorregadio
e a curva da solidão
também rima.
IV
Poderia deixar-me aqui
tolhido pela noite que arrefece.
Poderia começar a tremer de raiva
numa gratuita manifestação
de estátua
que bate os dentes de frio.
Poderia tornar-me no mais humano
dos seres
que por nenhuma causa
desistiu
só de fome
se deixou vencer
numa caixa de cartão.
V
Poderia estar aqui acossado
por este rumor de reflexos
da contradição
dos medos
de cidade adormecida
e deixar-me seduzir
pela luz álgida dos candeeiros
que se cruza indefinida
na fluorescência
das insónias
dos vapores do alcóol
e da razão
do preço da electricidade
no on/off da vida
VI
Deixar-me atrair
ao mais negro beco
onde lampeja
a lúcida discrição
das lâminas
e os mais desprotegidos
com mais ou menos luta
se apagam
encontrando por fim
a paz absoluta.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira