terça-feira, 27 de novembro de 2012

Poema sem perdão, nem arrependimento


 

 

Não me arrependo

de fazer cimento

da bolha na teimosia do desnível

e da falta de poesia como se faltasse o sentido

Não me arrependo

de ir fazer tijolo

e das mãos ásperas onde oscilava um fio-de-prumo

da falta de esquadria e de querer endireitar o mundo

Não me arrependo

de escavar os alicerces isso são ossos do ofício

cada um escava todos os dias os alicerces onde deixará

os ossos a carne e os vícios

Não me arrependo

de começar a casa pelo telhado

sonhos são sonhos

e não há sonhos inacabados

Não me arrependo

da diminuição do risco

e sei da acrobacia dos andaimes e das mortes sem capacete

e sei de outros conhecimentos que agora me são inúteis

Não me arrependo

da vida suspensa num guindaste desgovernado

somos tantas vezes aves a quem cortaram as asas

Ícaros de asas compradas a crédito 

Não me arrependo

das vigas de pré-esforçado inventando esconsos e tectos e sótãos

e com isso construir no primeiro andar 80m2 de céu

de um futuro super homem

não me arrependo

das casas que se ergueram a esconder o sol

e das janelas por onde entrou sem pedir licença o primeiro crepúsculo

não me arrependo

dos muros que construi à minha volta e à tua volta

e de outras tantas portas

neste labirinto que é a nossa vida de construir as casas para os outros

não me arrependo

da retórica do direito à habitação e da indiscutível qualidade dos acabamentos

era um pobre diabo

numa cidade de betão e com nervos de aço

não me arrependo

pois gosto de pensar

que sou feito desta argamassa de antes quebrar que torcer

não me arrependo

sei o que vale uma criança que brinca à volta daquela casa

que ao acabar-se nos fugiu das mãos

não me arrependo.

 

Lisboa, 27 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

Sem comentários:

Enviar um comentário