Não me arrependo
de fazer cimento
da bolha na teimosia do desnível
e da falta de poesia como se faltasse o sentido
Não me arrependo
de ir fazer tijolo
e das mãos ásperas onde oscilava um fio-de-prumo
da falta de esquadria e de querer endireitar o mundo
Não me arrependo
de escavar os alicerces isso são ossos do ofício
cada um escava todos os dias os alicerces onde deixará
os ossos a carne e os vícios
Não me arrependo
de começar a casa pelo telhado
sonhos são sonhos
e não há sonhos inacabados
Não me arrependo
da diminuição do risco
e sei da acrobacia dos andaimes e das mortes sem capacete
e sei de outros conhecimentos que agora me são inúteis
Não me arrependo
da vida suspensa num guindaste desgovernado
somos tantas vezes aves a quem cortaram as asas
Ícaros de asas compradas a crédito
Não me arrependo
das vigas de pré-esforçado inventando esconsos e tectos e sótãos
e com isso construir no primeiro andar 80m2 de céu
de um futuro super homem
não me arrependo
das casas que se ergueram a esconder o sol
e das janelas por onde entrou sem pedir licença o primeiro
crepúsculo
não me arrependo
dos muros que construi à minha volta e à tua volta
e de outras tantas portas
neste labirinto que é a nossa vida de construir as casas
para os outros
não me arrependo
da retórica do direito à habitação e da indiscutível qualidade
dos acabamentos
era um pobre diabo
numa cidade de betão e com nervos de aço
não me arrependo
pois gosto de pensar
que sou feito desta argamassa de antes quebrar que torcer
não me arrependo
sei o que vale uma criança que brinca à volta daquela casa
que ao acabar-se nos fugiu das mãos
não me arrependo.
Lisboa, 27 de Novembro de 2012
Carlos Vieira