domingo, 31 de agosto de 2014

Poema para uma aldeia abandonada I



Cúmplice do salgueiro,

vive à séculos 

no largo da aldeia,

consternado 

nos confins

de tanta ausência,

ao abrigo

da extensa sombra

do seu eremitismo,

atónitos

num afecto vegetal,

esforçam-se por cingir

estranhos mistérios

com sonhos recorrentes,

esconjurar

a culpa 

com o silêncio 

agridoce das amoras.



O chafariz

prossegue o seu inacessível

diálogo 

com o mármore rosa

desde a noite dos tempos,

agora interrompido 

menos amiúde

para a alquimia

das bocas sequiosas

cada vez menos jovens,

tanto tempo depois

da sofreguidão

dos cântaros

e das tardes, 

entrecortadas

pelas labaredas 

dos incêndios

e pelo coaxar das rãs.



Na janela entreaberta,

podia-se adivinhar

antes do frenesi do futuro

um rosto de aparente calma,

depois de um vendaval

doméstico

que foi a ânfora antiga

quebrada

e por detrás da cortina,

um côncavo bocejo

beijo

de jovem louca.



Intérpretes

desta absurda

coreografia,

de um desprendimento

sem rumo,

evocam a memória

dos que partiram

e confiam

que o seu gesto singelo

de se pentear 

na penumbra,

acompanhados

por aquele realejo de água

e de êxtase,

em esconderijos

de cambraia,

são eternos aprendizes

que se escutam no eco

da imortalidade,

distinguindo-se

na sua serena e tosca

imobilidade

da decadência do efémero.



Lisboa, 31 de Agosto de 2014

Carlos Vieira



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