Das dunas, olhava estupefacto, o
que mais me surpreendeu foram aqueles homens vestidos de nuvem, aspirando a
maresia e pairando na neblina de Abril sob a praia como se fossem deuses de lupa
na mão, a aumentar o caos de areia e sal. Poderiam bem ser, não fosse outros
adereços, criaturas de plâncton e de espuma animada numa estranha coreografia,
em “slow motion”.
Adivinhei a mancha de um corpo
estatelado sob a manhã e um arraial de fitas à sua volta, fiquei por instantes
toldado pela perturbação do vai e vêm azul e vermelho dos pirilampos das
viaturas das autoridades, adivinhava os rabiscos e croquis dos cadernos de apontamentos
dos investigadores estremunhados.
As gaivotas que passavam pelo
grupo, observando distâncias, desaprovadoras, deixavam breves palpites,
interrogações nas elipses dos seus voos a que não conhecia princípio, nem fim.
Uma mancha de sangue acendeu um
brilho no olhar do investigador como se o sol tivesse nascido naquele mesmo
instante, não lhe ocorreu com certeza mero incidente de animal ferido, não, ele
estava ali para perceber aquela morte.
Aproximei-me mais da cena, tanto
quanto o poder das lentes e da razão mo permitiam, não parecia haver sinal de
luta ou então ela foi muito interior, anterior e ali apenas temos um cadáver
sem orifício de entrada ou de saída, o que poderia não dar mais descanso.
O corpo reinava, atento à sua estratégica
disposição, via-se de qualquer lado sobre as dunas, ali esteve, certamente, à
espera que a maré subisse, para lhe beijar os pés descalços uma última vez.
Ligeiramente curvado e deitado
sobre o lado esquerdo, aquele homem de meia-idade parecia ter adormecido e
percebia-se no seu rosto a tranquilidade de quem já tinha enfrentado a morte, de
quem conhece a vida.
Tinha-se barbeado e de pronto, dirigiu-se
à praia que o conhecia para morrer como uma baleia, para que toda a gente o
visse morto e sem ninguém, não contassem mais com a sua solidária grandeza.
A última coisa que pretendia, era
causar muito incómodo, queria que a sua morte fosse limpa, sem a mínima
suspeita, como quem chega à última estação e diz boa noite ao maquinista.
Nenhum cenário deveria estar
afastado, crime, suicídio, morte por doença terminal, quem o tinha abraçado a
última vez, quais os motivos que estiveram subjacentes àquele ritual de solidão,
que ardor insustentável ou ferida ocasional, muitas perguntas estavam por fazer
e por responder, nomeadamente, onde se encontravam as peúgas e os sapatos 42/44
da vítima?
Esperem, encontraram uma foto
colorida - que raio, tenho as lentes embaciadas - nas suas mãos de morto amarfanhada,
talvez de raiva ou do estertor da morte, disseram-me depois que era uma mulher
de cabelo loiro curto e olhos azuis, daquelas mulheres que não escondiam a sua
origem escandinava, no seu perfil distante, frio e de um branco imaculado,
agora tinha o rosto com algumas rugas de papel fotográfico.
Não pode restar sombra de dúvida,
fizeram uma busca minuciosa, apertaram o cerco, isolaram os vestígios sem
contaminar, aí está, havemos de encontrar um rasto inscrito na clarividência
dos flash’s e infravermelhos, a apontar o sul do ciúme ou da vingança.
Ninguém reparou que havia uma
mulher a 150 metros dali, em direcção ao norte cozida com o negrume de magma dos
rochedos, salpicados de tufos de erva. Parecia fumar uma cigarrilha e no seu
rosto, o cabelo curto e revolto podia induzir em erro, mascarar a sua aparente
serenidade ou a sua alma extinta.
Olhava a cena que se esfumava, aquela
mulher poderia bem ser aquela que ligou para o 118, a que informou que se
encontrava um homem morto na praia, muito friamente, de forma muito distante,
como se fosse uma pessoa de família, de quem já não era muito chegada.
A seguir, dirigiu-se a um carro,
um Golf cinzento prateado, que se encontrava ali, um pouco mais distante e
partiu, não consegui tirar a matrícula, depois de entrar no alcatrão,
desapareceu sem que me parecesse estar a fugir. Ninguém a viu ou ouviu aquela
partida súbita, ninguém lhe perguntou nada, saiu de cena inexplicavelmente,
antes de se tornar suspeita.
Regresso agora com pouca
determinação o grupo de homens nuvem, de investigadores afáveis e reservados
nesse ânimo de análise, correlação e síntese, de polícias e de cangalheiros fardados
para o trabalho sujo, da contenção, da remoção, deixo-vos cada um com o seu
nevoeiro e a sua clarividência, que o vento levante a areia e apague os
vestígios, deixem o morto em paz ou que a sétima onda os leve a todos, que
corra com eles, vão investigar para outro lado.
Eu já tenho o autor identificado a
partir dos meus binóculos, ausente em parte incerta, porque o pobre diabo que
jazia à beira-mar, só pode ter morrido na dor da separação e da ausência, aquela
mulher só esteve ali para chorar as primeiras lágrimas e está por dentro de
tudo. Depois de ver que o morto estava bem entregue, seguiu a sua vida e foi viver
a sua morte longe pois não estava ali a fazer nada e tudo foi apenas uma
infeliz coincidência, no local certo à hora errada.
A fotografia era de autor, um
passaporte para regressar à vida. Consigo ainda ouvir as palavras do homem “Espera
uns minutos mais, meu amor, antes de partir!”
Lisboa, 30 de Abril de 2012
João Carreira
Imagem do filme "O Sétimo Selo" de Ingmar Bergman
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