Bateram à porta e bateu o meu
coração, tem meses que não os oiço, nem as pancadas, nem o coração. Estou cada
vez mais velho e mais surdo. Quem poderá ser, a estas horas, o que pode ser?!
Espreito pelo óculo embaciado, espreito
o rosto vagamente familiar que sorri do outro lado do mundo. Será um anjo ou a morte.
Tudo me parece muito suspeito que venha sem avisar. Não abro a porta a estranhos.
Agrada-me este silêncio na casa,
de cada ruído ter apenas a minha explicação, a minha respiração e a intermitência
dos carros no fim da noite, da rua e a merda da torneira que pinga. A vizinha
de cima discute, de forma aberta, a sua infidelidade e a do marido. Amor com amor se paga.
Gosto dos livros sobre a mesa desfraldados
na corrente de ar, do cd que avança às voltas até se perder, no labirinto que
criou. Onde raio se meteu a chave da despensa. Lembro-me no entanto, do toque
suave da tua camisa de seda e da tranquilidade com que te despias e eu já não
encontrava a saída.
Depois desapareceste, num ápice a
tua silhueta curvou-se e entrou para aquele luxuoso carro preto que te veio
buscar. Naquele dia chovia ou foram lágrimas que eu requisitei para aquele momento.
Desde sempre cultivaste uma certa mania da perseguição.
O tempo veio mesmo a propósito e
quase consegui apagar-te. Apenas deixaste detalhes, coisas marginais, aos teus
olhos e olhar sucederam-se coisas maiores, relâmpagos e trovões, depois de ti, seguiram-se
mais tempestades e o Inverno aconteceu mais vezes do que aquilo que era comum e
foi o dilúvio.
Fico aqui a aguardar, no fundo
foste tu que me conquistaste e fui eu que te perdi, não existe pior conjugação
de resultados, pelo menos, podia haver uma forma de te desentranhar deste quarto
e do teu perfume não estar sempre tão presente.
Neste caos em que o mundo para
mim se transformou, a espaços reencontro-te aqui em casa, não te raptaram
completamente, fui sobretudo eu que te deixei meu amor, tu sabes o caminho do meu
coração e tu deixaste de habitar a minha memória.
Lisboa, 15 de Maio de 2012
Carlos Vieira
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