sábado, 28 de junho de 2014

Discernir



Discernir
é uma palavra
que me atrai
e isso me impede
de lhe descobrir
o cerne
dando-me o ânimo
para prosseguir
escravo
do seu mistério

ir até ao cerne 
da palavra
é de alguma forma
como ir
ao centro da terra
e voltar
o que nos reconduz
a decantar
a luz e o sal
e inventar
o princípio do mundo

perceber
a força que emana
da fragilidade
translúcida
do cristal
da voz
e voltar a discutir
o adquirido
admirando-o
de outro ângulo
um átomo
que saboreio
no céu da boca

e na fragância
que a flor exorta
possuir
a essência
verdadeira
e do momento
extrair a precária
beleza da corola
e a silenciosa
clarividência
e equilíbrio
do caule
que a sustenta

e neste jardim
submerso
ficar sem respirar
perante
a quietude
dos animais
e das plantas
sem esquecer
que na superfície
aparente
das palavras
se esconde o grito
e a angústia 
do amor que não
corresponde
e a incapacidade
de discernir
as muitas mortes
de quem ama.

Lisboa, 28 de Junho de 2014
Carlos Vieira



sexta-feira, 27 de junho de 2014

Pássaro ferido




Oiço do outro lado 
da solidão
um ruído estranho
de animal
ou de respirar de ladrão 
abro a porta
repentinamente
e bateu a asa ferida
o pássaro
que se tinha
ali aconchegado
na soleira da memória
de par em par
abri o futuro ao poema
que nasceu
para acolher a ave
que sem querer
lhe bateu à porta.


Lisboa, 27 de Junho de 2014
Carlos Vieira


quinta-feira, 26 de junho de 2014

Percalços



de quem 
gosta de andar descalço

de quem
deu um passo 
em falso
na sua busca 
da verdade
e nunca mais
se encontrou

um pequeno percalço
risco
entre a realidade
e a cópia
um grande salto
para a humanidade

se vive
a liberdade
com a solidão
no encalço

por vezes
tudo é apenas 
uma simples
questão 
de perspectiva
e luz

de quem um dia
deu um passo em falso
deixou de andar descalço
e vive agora a pairar
suspenso
da noite dos tempos

Lisboa, 26 de Junho de 2014 
Carlos Vieira




terça-feira, 24 de junho de 2014

Caiu da tua mão...

caiu da tua mão
o lápis
e partiu seu bico afiado
porém ficou
intacta sua alma 
sua coluna vertebral
de grafite
e continuou a sonhar 
risco após risco
a perspectiva
o esquisso 
de um outro voo

Carlos Vieira

Amor impraticável



Silêncio aflito
grito estrangulado
palavra murmurada
ave derradeira
véspera de água
desterro de um barco
corpo inanimado
tempestade crua
olhos marejados
sonhos soterrados
percorre a rua alagada
no oportuno apagão 
a ferida interrupta
é uma janela aberta
para o abismo
um sorriso esquecido
naquelas mãos acesas
esse peixe exausto
e assustado
cresce a árvore exuberante
por detrás
do beijo surpreendente
acreditamos agora
na inacreditável substância
das nuvens
respirando
no calendário dos meses
onde a solidão
inventa o desabrochar
das flores e das aves
em noites de insónia
onde amadureceu
a nascente 
do néctar indizível
dos cantos 
que fazem vibrar
os inquietos materiais 
com que são feitas
todas as horas 
em que pede descanso
um olhar
depois que regressa
ao carrossel
dos recônditos perfumes
de um aroma
em que acontece
a insensata veemência
do amor
que não se pode tocar
nem se pôde saborear.

Carlos Vieira

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Sem amor nem distância



nesta prisão de verde triste
apenas um pássaro pia

responde-lhe um trovão
da vastidão do azul

neste diálogo de surdos
o poeta representa
a humana ignorância

de querer ver sempre mais
para lá dos humanos sentidos

e assim se vai perdendo
na volúpia da distância

Lisboa, 23 de Junho de 2014

Carlos Vieira

domingo, 22 de junho de 2014

O fogo posto de palavras



Toco as palavras
escaldam
incandescentes
espadas
no meio da planície
da batalha
deslembradas
sem sombra por perto 
ou pássaro 
que no seu canto
delas se condoesse
palavras 
que ardem na garganta
e queimam os lábios
arrancadas 
na urgência do coração
pedras lascadas
para a caça
da sobrevivência
afiadas
no cume da solidão
das montanha
palavras cansadas 
do diálogo vazio
antes da cinza
nunca ditas
que iluminam o silêncio
nunca caladas
pelo fogo eterno
de toda a Inquisição
penduradas no poema 
feito de palavras 
na injustiça da pele 
marcada
e em carne viva
sem história
e sem remédio.




um secreto mundo



há muito tempo
que não vejo
um percevejo
ou será 
que vi alguma vez?
se vi não me apercebi
como tantas vezes
acontece
com o discreto
rumor do mundo
do insecto
e na visita cobarde
com seus subterfúgios
de parasita
e todos
os "perce-beijos"
de traidor

Lisboa, 22 de Junho de 2014
Carlos Vieira

sábado, 21 de junho de 2014

miragens



bola de Berlim
com creme
e açúcar
e areia
porque sim
contra o peso 
o delicatessen
e a medida
da higiene
europeia
e um fragmento
de mar 
a conspirar
pelo rabo
do olho
num dia de sol
limpo

Lisboa, 21 de Junho de 2014

Carlos Vieira

Homem matinal



Vai pelas bermas
das veredas
na vertical da clorofila
onde se insurgem
pássaros matutinos
às escondidas
sobem os caules caracóis 
canários
na sua lentidão e com gotas
de orvalho
da madrugada que descem 
em contramão 
tudo animado pelo assobio
da brisa
em arrepio e dança das canas
há pequenos 
animais depois do sono
que suscitam
tramas e redes efémeras
oscilações
cúmplices do agricultor
a caminho
dos frutos e de exortar a horta
que expostos
a perigos e pragas várias
desta chuva
fora do tempo e de si
vai inseguro
e já dormiu a sono solto
o homem 
que desce a vereda
interpelado
pela ternura das plantas
e dos bichos
embalado pelas colheitas.

Lisboa, 21 de Junho de 2014
Carlos Vieira

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O dia da libertação



Quando cheguei 
um pássaro voava 
esbaforido
pela casa
vendo-se preso
naquela enorme
gaiola
ao ver-me entrar
pousou 
na cantareira
e cantou
a sua libertação.

Lisboa, 20 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Cena de caça



a lebre
corre desalmadamente
e o galgo também
tudo o que me interessa
é o rio que corre
paralelo
ao odor 
dos vimieiros
por detrás 
dos animais
que no seu instinto
de sobrvivência
parecem voar
e levo esta imagem
à cintura
cumpriu-se
a minha actividade
cinegética

Lisboa, 21 de Junho de 2014
Carlos Vieira

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Pássaros de papel

Pássaros de papel
Se os meus versos
fossem escritos
pelo bico adunco
e com a garra
dos pássaros
os meus poemas
poderiam 
ser o golpe de asa
das aves
em pleno voo
e podia admirar
temeroso
o mundo 
desde as escarpas
frequentando
a madrugada
dos cumes
e a noite
dos abismos
assim fico-me
na quietude 
da brevidade
a preencher
de sonhos
o vazio.

Lisboa, 18 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Pequeno trama



oh! o alperce
com sua penugem
de gato
em madrugadas sorrateiras
e os teus lábios húmidos
do sumo 
delambido no meu peito
até te deteres
exausta de desejo
perante a inefável
mas sólida banalidade
de um caroço
às voltas na tua boca
a tua pele de ocre escuro
transitória penumbra
aparente quietude
de alperce ou de felina
que me espera
e que adivinho
iluminada 
por detrás do seda
dos cortinados

Lisboa, 19 de Junho de 2014
Carlos Vieira







terça-feira, 17 de junho de 2014

Atropelamento com fuga

Um peão 
na passadeira
corre muitos riscos
uns a seguir 
aos outros
a preto e branco
hoje houve 
mais um atropelamento
com fuga
tudo a cores
o sangue ainda corre
vermelho
pelo alcatrão
e a circunstância
de um jardim 
onde se acenderam
as luzes dos pirilampos 
azuis e amarelas
e as sirenes
a uivarem desalmadas
o peão voou
e teve morte 
de "passarinho".

Lisboa, 17 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Bicho de conta


observo
o bicho de conta
em verso

Lisboa, 17 de Junho de 2014


Carlos Vieira

exercício de voo



por vezes 
o amor
é uma andorinha
um boomerang
que regressa 
para fazer
num qualquer 
momento
a preto e branco
o ritual
da Primavera 

Lisboa, 17 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Elegia do afogado



Podes seguir agora
pelo cais
não cais
carregando
esse teu molho de ossos
desengonçados
vais nesse desespero
de quem fica
no olhar 
de quem parte
escutaste o alvoraçar
de um incêndio
fulminante
na guelra dos peixes
e o rumor da água
e os limos húmidos
nas paredes 
de mármores antigos
dos teus últimos beijos
devastados de marés
e de razões
conheceste o fulgor
dos pequenos caranguejos
espreitando
na aresta de um coração 
esse motor fora de bordo
que sangra viagens
no porto 
sabes que é noite 
pelo ranger das madeiras
e das ferragens
a lamberem os pulsos 
deste tempo
no drapejar
das velas brancas
por cima das quais
descansam as gaivotas
e a audácia do pensamento
onde falta o vento
e a bússola
arrastas a âncora 
e uma garrafa verde
a partir da qual
vislumbraste um rumo
de penumbra
a sonhar seda e especiarias
e rotas ancestrais
na escala de cabotagem
que te tocaram
na vida e na morte
agora ali estás
literalmente
afogado
de toda a paisagem
desfigurado
embora coroado
desse viço resplandecente 
de algas
a descaírem-te
pelo sobrolho.

Lisboa, 17 de Junho de 2014
Carlos Vieira


domingo, 15 de junho de 2014

Sinais de Fogo

Oiço nas minhas costas
o ruído breve
da pedra de isqueiro
um quase imperceptível
cheiro a gasolina
sei de memória
que se seguirá a pequena
língua de fogo
o primeiro cigarro do dia
nos teus lábios
o teu rosto que se esfuma
a tua mão vai pousar
de seguida em brasa
no meu ombro
está chegado o tempo 
de te abandonar
em que se apagou a chama
e se tornou impossível
olhar-te de frente
e assim me confrontar 
com a morte
que são as cinzas
do incinerado amor
de costas voltado.


Lisboa, 15 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Teu corpo minha estação


A roupa leve
flutua
por cima
do esplendor
da tua pele
minha brisa
de despertar
o Verão
está aí à porta
despes-te
nas minhas narinas
o frémito
do odor
do teu corpo
progressivamente
andas à deriva
pela casa
ávida de sombra
rumo à nudez
essa minha miragem
absoluta
o Verão torna o ar
irrespirável
em mim
acende-se o ciúme
não vão
os vizinhos
entre as lâminas
dos estores
vislumbrar
o deslumbramento
roubar-me
o segredo
da tua presença
de um tempo
fresco e precário
coincidindo
eterna e solar
no prenúncio primeiro
de mais um Verão
que nos envolve
teu corpo nu
estival
minha próxima
estação 
a pedir chuva.
Lisboa, 15 de Junho de 2014
Carlos Vieira


                                          "  Summer In The City" - Edward Hopper (1949)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

A conferência



A conferência prossegue 
como um circo de vaidades
e os papagaios
não se cansam 
não se detém 
na sua apresentação
multimédia de vacuidades
tem sempre uma piada
para acordar
a audiência
tem frases lapidares
fluxogramas
e imagens 
nunca tem dúvidas
a plateia
semi adormecida
nunca tinha pensado naquilo
pelo menos embrulhado
daquela maneira
e o conferencista prossegue
de forma a atingir o zénite
mesmo a tempo
depois segue-se 
a colocação de dúvidas ancestrais
os que perguntam
sabendo a resposta
os que só querem 
cinco minutos de fama
e procuram convites
para eventos
os intrusos
os especialistas de tudo
os que procuram os oradores
no fim da seção
os cumprimentos 
no princípio da seção
a abertura
o discurso redondo
os cumprimentos
da organização
as desagradáveis interferências
do microfone
e eu a passar para as brasas
e o meu vizinho a ressonar
isto que não acaba
e um intervalo para o café
e um telefone
que não estava no silêncio
e as palmas e o riso
por efeito de simpatia
meus senhores
e minhas senhoras
eis os vendedores 
de "banha da cobra"
dos tempos modernos.

Lisboa, 13 de Junho de 2014

Carlos Vieira

Estátua de sal

ali estás 
sentada 
serena
expectante
de perna cruzada
com o horizonte
de um mar azul 
à tua espera
o cristal
linear

inquieto
o teu cão ladra
ao vento
fareja
o meu desejo
cruzado com o seu 
de afastar-me 
de ti
e já agora
do areal

eu trago 
à trela
a contradição
da liberdade
tu és a estrela 
que vem 
ao encontro
do meu tempo 
meu refúgio
e búzio
a murmurar
o sal de um segredo

Lisboa, 13 de Junho de 2014
Carlos Vieira




quinta-feira, 12 de junho de 2014

Viagem em círculo

Viagem em círculo

Estou um pouco 
enjoado
de pontes e de canais
ou talvez 
a cervejaholandesa
tivesse sido 
demais.

Deixo-me ir 
ao sabor da maré 
e da espuma
da manobra tranquila
sigo o labirinto secular
do tijolo 
e dos barcos-casa
na bruma.

Caio na armadilha 
da eloquência 
das janelas 
e das escotilhas
subitamente 
estou acima 
da linha de água
do seu murmúrio
entro
no roçagar
doméstico
da sala de jantar.

Ao mesmo tempo
pareceu-me ouvir
na penumbra
de um recanto
o resfolgar
do voo curto 
da navalha
que antecede
o grito lancinante.

Quarteirões à frente
algures acendem-se
janelas de oportunidades
montras de espanto 
a nu
de um lado e doutro
abismos de alma
hinos ao impudor
dos sentimentos.

Em caleidoscópio
precedendo o rodopiar
manso das bicicletas
com suas as cintilações 
de alumínio
interpreto a subtileza
das imagens 
de desencontros
o chapinhar nas margens 
da solidão 
no desencanto.

Abandonados 
nas esplanadas
e por becos esconsos
simulacros 
de um leilão do amor
envolto de perfume 
e especiarias
e do fumo 
dos cachimbos de água.

Viagens 
em círculo viciado
ou viciante 
pelos canais
pelas ruas estreitas
onde se cruzam 
e se entendem
dialectos exóticos
do outro mundo
na noite 
de Amesterdão.

Amesterdão, 11 de Junho de 2014

Carlos Vieira

Viagem em linha recta



Perdi-me literalmente
no meio da floresta
de regresso ao hotel
nem sinal do lobo mau
nem do Capuchinho vermelho
nem do gps do telemóvel
apenas um casal de anjos
do Suriname
me colocou no rumo certo
e me deixou são e salvo
agradeci-lhe comovido
pois deram-me o que podiam
e eu não pedira tanto
extenuado 
e um pouco afectado
pelos vapores do alcóol
que no entanto
me ajudaram a rescrever
a história.

Lisboa, 11 de Junho de 2014
Carlos Vieira



terça-feira, 10 de junho de 2014

Breves apontamentos da viagem Lisboa-Amesterdão

I
aqui estou eu 
a voar pelo meio das nuvens
o que é diferente 
de andar nas nuvens

II
neste avião airbus A320
mais perto do céu com escala 
em Amesterdão
mantenho-me nesta altura
à mesma distância de Deus

III
a minha janela
é por cima da asa esquerda
temos tido
um pouco de turbulência
como uma falésia cinzenta
uma nuvem ergue-se 
à nossa frente
entramos por ela a dentro
o poema não consegue
descer à Terra
vivo em várias atmosferas 
e matizes 
de cinzento

IV
de olhar fixo em busca
de um horizonte
esqueço-me de ler
mesmo à minha frente
ao longo da asa
" Do not walk outside this area"

andar a voar
por cima das asas
o homem essa estranha ave 

V
por momentos
a mínima alteração
do "trabalhar" 
do motor do avião
suscita 
um outro ritmo cardíaco
no bater do meu coração
estranha convergência
amor impossível
de ocasião

VI
passei 
há momentos
pela cordilheira dos Pirinéus
daqui de cima
não distingo
os picos das neves eternas
à memória
e por alto
apenas os trilhos 
esquecidos
dos imigrantes de "assalto"
dos anos sessenta
por onde andas meu pai?

VII
daqui
de entre as nuvens
sonhos prosaicos 
de sardinhas 
meus e dos pescadores
da única traineira
no encrespado mar
do Golfo da Biscaia
a única diferença
é que as minhas
são douradas do fogo
as deles prateadas de azul e sal
sonhos de sardinhas
entre as nuvens
sem espinhas

VIII
hoje dia 10 de Junho
dia de Portugal
recebi uma medalha
da cereja do Fundão
das minhas mãos
a 10 mil metros de altitude
por cima de Orléans
que distinta auréola grená
na minha camisa branca
se bem que um pouco
deslocada
um pouco acima do umbigo
também eu recebi
uma medalha

VIII
justamente
a meu lado
a mãe e seu bébé
esperei o pior
por este conjunto de altar
quase rezei
mas o pequeno deixou
escorrer a poesia
e embalou-o as nuvens
do leite materno
e de divino
apenas o seio castanho
que pelo canto do olho
não pude deixar 
de vislumbrar

IX
estou absolutamente 
sozinho na estação de Diemen Zuid
bem existe uma gaivota que perdeu o Norte
um avião da KLM a fazer-se à pista
o crocitar de um corvo
a interromper o ruído de fundo 
do tráfego
eu e a máquina dos bilhetes
travamo-nos de razões
e se não fosse carlos
uma miúda providencial
coberta de tatuagens 
e furada de piercings
e dinheiro trocado
tinha dormido
nesta estação
no fim deste meu mundo

X
aqui chegado
dez minutos a pé
pela floresta
um hotel sem história
junto a um discreto lago 
uma queda de água zen
com salada
até começar a escurecer
ao ritmo de uma canção romântica
dos anos oitenta
um pato pousou-me
na mesa
fiquei a olhar para ele
entendi-o como um sinal
enviado por Deus
para ele e para mim
por hoje
chega de voo
e deste meu grasnar

Amesterdão, 10 de Junho de 2014
Carlos Vieira






















segunda-feira, 9 de junho de 2014

6 de Junho de 1944



Um rosto de espanto
incrédulo, sem pé,
perante o vazio.

A mão acesa 
com uma granada
essa flor quase animada.

O corpo arrojado
desmembrado, uniforme
rasgado, em mais um dia D.

A praia é um jardim
de minas e arame farpado,
um perfume de sal e pólvora.

A areia juncada de corpos
a apanharem sol, inútil é o efeito protetor
do próprio sangue.

Os soldados chegam 
nas barcaças de braços abertos 
vão abraçar a morte.

Morre gente 
aos milhares pela Democracia
nas praias do dia D e nos outros dias.

Por ti, por mim, por nós
morrem todos os dias na indiferença
parece que foi ontem.

Foi hoje, ontem, foi há muito tempo
e valeu a pena, quem esquece?
quem é que se lembra?

Para que serviu
o fogo de rajada, a baioneta em riste?
E agora calada, e agora calada!

E agora aqui estamos
mais um dia triste de ondas 
de medos e de frio.

Mais uma noite 
de desembarque na praia 
de uma qualquer Normandia.

Lisboa, 6 Junho de 2014
Carlos Vieira



sábado, 7 de junho de 2014

sorriso na penumbra



já tarda
em anoitecer

já a ave 
prolonga
o seu voo

já o amor
não demora
a adormecer

eu vou ficar
aqui sentado
no alpendre

a ave e a lua
vão pousar
no meu colo

a seguir
vou pendurá-las
no cabide

eu irei a tactear
na obscuridade até à cama
seguir o teu perfume

ainda a tempo
de ver o teu sorriso lunar
a desvanecer

Lisboa, 7 de Junho de 2014


Carlos Vieira

cuidado com as palavras



as palavras
menos tímidas
hoje vieram 
comer-me
à mão
se me distraio
diria adeus
ao indicador
todo o cuidado
é pouco
com as palavras
agora 
que já se foram
os anéis.

Lisboa, 7 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Crepúsculos A17

há um anúncio
de chuva
no céu de chumbo
nos espelhos
de água 
de arroz

apetecia-lhe
agora
uma fatia
de melancia

arrasta
polígonos
ancestrais 
de nós
com cordas
feitas 
de elos e luas
de palavras
onde tange
a poesia

de fundo
o cheiro putrefacto
das celuloses 
e estrias
de fumo
e uma melancolia azul
impaciente 
de estrelas

ali
tirou 
as galochas
para lavar 
os pés
que viu 
descalços
pela primeira vez

um comboio
eléctrico
suburbano 
curto circuita
a paisagem
embalado
entre dois tons 
de verde
e de verdade

podia ver-te
à janela
invocando
a renovada
serenidade
da tua pose
de perfil

ali ao lado
o frágil encanto
no mesmo tempo
dúctil 
do pergaminho
que emana 
perfume
subtil

e desejo
em branco
incandescente
de percorrer
esta distância
do amor
a tinta permanente

o escritor
fuma
o cachimbo 
da paz
perplexo
interroga
a evolução
no matiz 
da paisagem
e da luz

percebe
a sua ausência
e o teu desassossego
no timbre
dos pássaros

Lisboa, 7 de Junho de 2014

Carlos Vieira

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Comércio da dor


Uma ambulância
esbaforida
e com os pirilampos acesos
sobe aos gritos 
pela rua acima

transportam 
uma dor calada
igualmente desesperada
os transeuntes 

a cidade 
está em convalescença
sofreu cirúrgica intervenção
ainda se encontra
aqui e ali esventrada
ligada à máquina

o país
esse prossegue 
a sua lenta agonia
anémico
abúlico
entre o tratamento
inconsequente
e os efeitos secundários
inconsolável
perante tanta urgência

a sua gente
sem sossego
a precisar de alento
entrega-se 
a essa generalizada
indiferença
a que chamam
morte lenta
destino
fado

eu assisto
a este melancólico
mercado dos sonhos
a preço controlado
à morte 
ao retardador
a este imenso circo
prestigidatação 
anestesia colectiva.


Lisboa, 4 de Junho de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 3 de junho de 2014

Amor impossível II



Deito-me
fecho os olhos
que as raízes
ávidas
me possuam
lentamente
sou eu ainda
sem palavras
que me elevo
ao cimo da terra
nos meus braços
suporto ninhos
e escondo
os pássaros do canto
e invento
os sonhos e os frutos
reconheço o sumo
da tua boca
eu durmo
e sem nada fazer
tu te entregas
no céu
de jogo viciado
e tu me vences
na terra
em campo aberto
numa luta tenaz
entre não ceder
à loucura
sem ficar escravo
da sensatez
sobreviver
a um amor
impossível.

Lisboa, 3 de Junho de 2014

Carlos Vieira

Segredos



Não digo nada
nem quero dizer
sou um poço
sem fundo
que só quer
dar água fresca
nem uma palavra
me irão arrancar
sei o que é 
guardar segredo
só por cima 
do meu cadáver
mas agora 
que me esqueci
por onde vim
secretamente
o que me trouxe
até aqui
incessantemente
busco a chave 
que transforme
o segredo
o testemunho
que dê sentido
à palavra dada
que era para
ser grito de combate
senha de acesso
à construção
da memória
à ingrata missão
de dar vida
secreta e interior
e fazer pulsar 
o sangue que corre
que dá respiração 
à melodia
e aos poemas
e que dando-lhe
também lhes tira
uma estranha 
forma de vida.

Lisboa, 3 de Junho de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Nocturno Silêncio



Uma após a outra
as palavras 
vão sossobrando
os objectos 
repousam
exaustos
sobre as mesas
e o mármore
é a hora
em que se acende
a velada nudez
dos corpos
as roupas 
são arquipélagos
semeadas 
pelo chão
dão testemunho
contundente
de sofreguidão 
respira-se
violentamente
agora
as palavras
são pássaros cegos
a baterem na vidraça
já não valem
nada.

Lisboa, 1 de Junho de 2014


Carlos Vieira

A noite caiu...

a noite caiu
e eu fui atrás
espalhei-me 
ao comprido
as estrelas que vi
não eram minhas
eram da noite
que caiu

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira

domingo, 1 de junho de 2014

pão-de-ló



subitamente
o perfume do pão-de-ló
atravessa o corredor
não resisto
a esperar
que do vórtice
das tuas mãos
devore
esse poema 
familiar

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Familiar IV



Oiço o marulhar
do tráfego
no eixo Norte-Sul
através desse mecânico
vociferar
e via essa coordenada
do dia-a-dia
tendo a me encontrar.

O meu plano
é meter vidros duplos
de forma a não perder
esses murmúrios 
desses outros objectos
e afectos acústicos 
da plataforma familiar.

Aqui estou
feito compositor
a distinguir
entre o segredo e o ruído
interior
tangendo
a perpendicular
do corpo
ou direito ao coração.

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Hombre

Hombre soy ya vencido,
vástago del horror
y espanto de la nada.
Hombre soy, ya cadáver
herido por la ausencia,
la frustración, la culpa;
por el viejo sentir
de ser distinto y menos
que el resto de los vivos.
Mitad hombre y demonio,
me odio y me castigo
por ser solo una ruina,
este hombre triste y solo
lleno de espanto y miedo.
Hombre soy: hombre he sido.
Hombre fui quizá un día.
Hoy no me reconozco.


IÑIGO LINAJE
Apuntes de una vida
(2004)





Homem sou vencido já,
filho do horror
e espanto do nada.
Homem sou, cadáver
ferido pela ausência,
pela culpa e frustração;
pelo velho sentimento
de ser diferente e menos
do que os outros viventes.
Meio homem e meio demónio,
odeio-me e castigo-me
por ser só uma ruína,
este homem triste e só,
cheio de espanto e de medo.
Homem sou, homem fui.
Homem fui talvez um dia,
hoje não me reconheço.

(Trad. A.M.)

a outra cidade



Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e
impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre
cruzadas.
Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz;
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. Nesta cidade
habitam desde há anos os poetas. Caminham silenciosos de
braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras,
paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados,
perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas
estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não
ditas.



giánnis ritsos

tradução de custódio magueijo


Se tu és a égua de âmbar...

Se tu és a égua de âmbar
eu sou o caminho de sangue
Se tu és o primeiro nevão
eu sou quem acende a fogueira da madrugada
Se tu és a torre da noite
eu sou o cravo ardendo em tua fronte
Se tu és a maré matutina
eu sou o grito do primeiro pássaro
Se tu és a cesta de laranjas
eu sou o punhal de sol
Se tu és o altar de pedra
eu sou a mão sacrílega
Se tu és a terra deitada
eu sou a cana verde
Se tu és o salto do vento
eu sou o fogo oculto
Se tu és a boca da água
eu sou a boca do musgo
Se tu és o bosque das nuvens
eu sou o machado que as corta
Se tu és a cidade profunda
eu sou a chuva da consagração
Se tu és a montanha amarela
eu sou os braços vermelhos do líquen
Se tu és o sol que se levanta
eu sou o caminho de sangue

Octavio Paz, in Salamandra

familiar III



Tenho três filhas
no timbre 
da sua voz
na luz inquieta 
do seu olhar
na incrível subtileza 
do amor
à flor da pele
deixo-me ficar
embalado
pelo poema 
a decantar o sangue
espesso 
do afecto imperial
que desagua 
na moche
dos seus abraços.

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira




familiar II



Despertei
estremunhado
com a sensação 
de asas 
ou de um coração
a bater
fora de mim
ali estava 
a minha filha
esperando
pacientemente
que acordasse
desde esses tempos
que acredito
em anjos.

Lisboa, 1 de Junho de 2014

Carlos Vieira

familiar I



saudade
dos teus pés descalços
sorrateiros
pelas manhãs
na abordagem do leito
e de me cobrires de beijos
com manteiga

Lisboa, 1 de Junho de 2014

Carlos Vieira

Pétala


Da flor 
a pétala
arrancada
asa da dor
pele da sombra 
de onde 
se precipitou
a lágrima
e a abelha
pousou
de onde exala
um perfume amável
pétala pisada
pela inocente 
sandália de couro
da criança
atirada
pela brisa
contra a parede
e a solidão do beco
memória esquecida
de um beijo
deserto.

Lisboa, 31 de Maio de 2014
Carlos Vieira