na noite escura
a humanidade é um rabisco tosco, traço aceso do lápis de
carvão, cujo vigor se vai esbatendo
no precipício branco da página com assinatura reconhecida
no ardor da luta
a escrita mais pungente são hieróglifos, feita das
cicatrizes dos soldados com mais ou menos
pontos, evidências de danos colaterais
essa alma de fraga
feita de barragens e de quedas de água, nos rápidos percursos
da vida do alcatrão e do
cimento e das energias alternativas
fé indómita
de peregrinos e empreendedores, articulando orações, cunhas,
encruzilhadas, carreiras,
atalhos, futebol e currículos
loucura de sílex
sobrevoando o céu e a terra leva-os consigo, não lhe cabem no
peito, emergem às golfadas,
punhais e punhos de renda dos negócios, semeando
estratégicos vendavais
vai duende e arauto lúcido
que percorres avenidas e becos e conta as histórias, apenas histórias,
que outra coisa nos
podem contar, estes novos duendes, depois de jogarem na
bolsa e no totoloto
neves eternas, vegetação luxuriante e animais portentosos
ninguém previa sua morte fulminante, naquela estação de
inverno, de um período com
“forfait” incluído, naquele ano só farias pistas vermelhas
no entanto já lhe chegara aos ouvidos
pássaros de insónia e
da montanha
cujo canto atravessa o deserto e se afogam de inveja, nesses
oásis que são as áreas de
paisagem protegida, depois de não sei quantos “Valiuns”
estou aqui ao balcão desse manancial de seiva e sol
que alimentam a minha sede de justiça, da raiva justa dos
rebeldes e a cirrose, de água lisa em
copo alto com duas pedras de gelo, meu amigo dá de beber à dor
na insólita manhã
onde todos dormem e desconhecem o sucesso vespertino dos
burocratas, as manchetes que
vendem o relevo dos escroques e medíocres e ligam a
ventoinha com que espalham a lama
brotam na árvore nua
nesse espectro dilacerado das lâminas da indiferença e de
animais abandonados e flores de
metal
que falharam por uma unha negra uma zona vital
véspera de chuva ácida
de mão esgarçadas e de bocas ávidas, desconhecendo a
essência das palavras, estamos em
seca estrema
e tempo estreito
vertigem de um olhar atónito no vazio, nesse magro pecúlio
de uma vida inteira, “jaz morto e
arrefece” o corpo de um ladrão, depois do furto formigueiro
olha a colheita escassa
beijada pelos pés descalços da brisa, enfeitiçada do canto que
não conhece a esperança
fechem a porta, cuidado com as correntes de ar e os cartões
de crédito
vento norte
país do sul de gente inquieta, aguardando o tempo do
regresso ao sonho dos barcos cansados
apaga esse ar envergonhado da periferia, de não conseguires
pagar o empréstimo
mar rouco
ruminando o sal e vigiando o quarto crescente e a
inacreditável destreza dos peixes nos corais
mar da frota desmantelada e de pensão completa e de reforma
adiada
silêncio antigo
cúmplice das festas caladas no território dos sentidos, de corpos
que só agora desceram das
nuvens, acorda meu amigo da noite escura para a dura
realidade
e aguenta estóico
que é sempre tempo de escrever
e virar nova página
da mesma vida
vai sendo tempo de
uma nova vida
de uma nova morte
Lisboa, 25 de Junho de 2012
Carlos Vieira
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